Nós estamos aqui, sem saber exatamente onde é aqui. Com essa afirmação quero dizer que a ontologia do mundo nos é oculta. Do mesmo modo que para um animal autoconsciente o significado da natureza lhe é vedado, pois existe imerso numa vida que ele ainda não é capaz de compreender, assim vivemos continuamente sem saber numa realidade atemporal, todos faces de um mesmo Ser, sem suspeitarmos.
O mundo criado reflete vividamente essa inconsciência ontológica
Por isso ele espelha o sofrimento essencial, a separação que a consciência aparentemente sofreu da realidade da qual ela emergiu. No primeiro ato da história cósmica a consciência gradualmente abre os seus olhos para a incompreensível perplexidade da existência. Toda a procissão dos seres evidencia um gradual aumento na capacidade de reconhecerem a si mesmos em relação ao ambiente no qual vivem.
No segundo ato a autorreflexão, a autoconsciência surge: na incipiente individualidade de um primata errante, um bonobo ou um chimpanzé que perscruta o ambiente em busca de alimento, e que acidentalmente se depara com o seu reflexo à beira de um lago; na primeira contemplação que um de nossos ancestrais hominídeos realiza de sua mão. No terceiro ato nos separamos integralmente da natureza na qual nascemos. Nos vemos à parte, distantes, nossa mente órfã, sós e vulneráveis aos terríveis ventos de uma existência que já não mais nos acolhe nos braços da comunhão inocente.
Somos exilados e jogados no crepúsculo do Ser, e agora a luta pela sobrevivência domina os nossos dias
O terror da existência isolada nos faz destruir desesperadamente uns aos outros e a natureza que nos deu vida – ela agora nossa principal inimiga. O domínio é a única visão que se mantém firme aos nossos olhos. As civilizações surgem uma a uma em todos os cantos do globo, irmãs em espírito, fruto da anomalia dos seres que já não mais podem viver a partir do Uno. Cada um agora dividido, em guerra consigo mesmo. Em guerra com os outros. Filhos da queda e agora lançados num mundo cego povoado por seres imaginários, frutos de sua imaginação torturada, seus novos deuses.
O início do quarto ato ocorre quando eclode a intuição de que é possível o retorno à condição original
Mas não por meio de uma regressão que eliminaria as novas faculdades adquiridas pela consciência na sua tortuosa jornada de ascensão das esferas da Natureza. Sentem-se agudamente os limites do mundo inventado. Vislumbres de uma nova possibilidade de existência perfuram o dia dos seres e cada vez mais se fazem presentes – intimações de um outro estado de ser. A intensificação da consciência da separatividade revela os contornos antes ocultos da prisão ontológica na qual habitamos há muitos milênios. As grades da inconsciência com pungência crescente expõem a falsidade de um mundo pensado como real à parte da realidade que o sustenta. Os ídolos se mostram secos. O espetáculo um triste jogo de véus e sombras. Os deuses vãos desejos alimentados pelo sangue de um mundo em ruínas. Algo treme nas profundezas dos seres que habitam o mundo invertido de suas imaginações compartilhadas. Rupturas súbitas perturbam o torpor da consciência aprisionada. Em cada corpo o mesmo espírito em vias de despertar.
O que é essa nova visão que nos atormenta? O que está acontecendo com o mundo? Pensamentos que perfuram o casulo da mente dividida. Surge então uma explosão de incomum vivacidade mental. A restituição de uma sensibilidade cruelmente despedaçada. Um olhar que não é deste mundo assume o plano da mente dividida.
Quem é esse que agora nos olha?
O que é esse novo espírito que contempla o Universo inteiro como fruto de sua imaginação? Será ele o deus que perdemos? Será esta a verdade que as profecias proferidas nos lábios secos dos profetas queriam nos dizer? Esse olho não é feito da carne dos seres que sofrem para suportar a sua contínua irrupção. Suas ideias são incapazes de contê-lo e de articular as novas dimensões às quais são submetidas. O olho da ordem infinita é como o reflexo que o primata vê pela primeira vez como si mesmo.
Num único passo é feito o salto da mortalidade para a imortalidade. O envoltório de carne é preenchido por um espírito que o transcende. A reminiscência da verdadeira natureza da existência emana dessa nova mente que contém os seres do plano cindido. Cada metade de um cérebro em guerra consigo mesmo compreende o seu oposto.
O deus se lembra
Caído e fragmentado num mundo de sua própria invenção. Perdido dentro de miragens feitas com a luz de sua própria imaginação. A eternidade se abre. O tempo revela janelas para a realidade que o contém. A vida incessante expõe o silêncio do puro espaço do ser. O Absoluto vê sua natureza indivisível nas duas facetas do cosmos. A criatura colapsa perante o sublime despertar do Absoluto dentro de si mesma. Agora ela nem mais possui o seu si-mesmo, pois ele se tornou idêntico com o Si-mesmo daquele que a criou. A perplexidade provoca o colapso. Todas as possibilidades ontológicas se revelam no espaço transtemporal dessa Mente que agora está viva dentro dos seres. Cada folha que tremula, cada inseto que percorre a terra plena de sombras revela o corpo daquela que é a inteligência primordial nas bases do mundo. Ela se vê uma vez mais.
A vastidão do Universo ressoa com a canção do despertar. Nada está fora da Grande Mente. O Universo percebe e sente o evento singular que se manifestou nele. A consciência vê no cosmos a sua própria face. Em cada criatura contempla a si mesma em silêncio. Todas revelações do que ela é. O nascimento de Deus em cada criatura aprisionada. Ninguém aqui além dele, além dela. O mundo invertido se parte em pedaços para que a verdadeira ordem das coisas surja mais uma vez. Os mundos de separação em dissolução para o retorno da contínua comunhão com o Ser.
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