Autoconhecimento

Sincronicidades e transições ontológicas

transição
Escrito por Daniel Rezinovsky
A consciência pode se relacionar de uma maneira muito peculiar com a realidade. Quando esse modo complementar se torna disponível para nós, seres que vivem e respiram racionalidade, nos sentimos intensamente desorientados. Tenho a impressão de que essa é a fronteira atual no desenvolvimento da consciência, um processo que se intensificou nos últimos três séculos, tomando os processos da consciência europeia como base e a sua posterior integração com a consciência oriental como um fenômeno secundário. Isso explicaria o aumento significativo de transtornos mentais nesse período, já identificado por muitos investigadores, e os primeiros diagnósticos das doenças basais da psiquiatria, a esquizofrenia e o transtorno maníaco-depressivo, feitos no final do século 19.

A percepção da realidade não dual é a experiência do que os antigos denominavam a consciência mágica aliada à consciência racional.

Na experiência da magia a intencionalidade possui efeitos diretos sobre a realidade externa e, por sua vez, a realidade externa reflete linear ou não linearmente – o que é mais comum – o estado de consciência do observador; na experiência da realidade por meio do prisma racional, observador e observado são distintos e a mente não possui efeitos causais diretos sobre a realidade, a não ser por meio da transformação dos comportamentos de um indivíduo e de seus subsequentes efeitos sobre a realidade física. Mas a mente está restrita ao organismo local, ao cérebro individual, ou ao menos uma porção dela. A integração desses dois modos de compreender e experimentar a realidade é o que poderíamos chamar de cognição não dual.

Ontologia

Temos um pequeno vislumbre da não dualidade no fenômeno da sincronicidade. Temporariamente a barreira que diferencia o observador da realidade aparentemente externa e independente dele é transcendida. Eu penso no livro azul e, de repente, alguém me liga falando de um livro azul. Abro um canal de televisão e vejo um livro azul – casos adicionais podem ser derivados por dedução. Esse fenômeno, aparentemente curioso, que é por muitos descartado como um fenômeno estatisticamente anômalo, não pode ser compartilhado, ao menos em termos de seu impacto subjetivo. É precisamente o impacto sucessivo de muitos incidentes sincronísticos que tendem a produzir uma nova concepção de realidade naqueles que os experimentam. Por isso, a concepção elaborada por Jung diz ser uma ruptura ou transgressão do princípio absoluto da causalidade. A introdução de pequenos incidentes sincronísticos na nossa vida tende a ser bem-vinda, e nos produz um efeito benéfico à medida que orientamos nossas decisões – ao menos os mais místicos entre nós – a partir de sua aparição. Interpretamos que designam uma conexão sutil e talvez profunda entre os desígnios do nosso destino e os caminhos apontados pela consciência estreita na qual vivemos a maior parte de nossa vida.

É como se esses eventos escancarassem a trama oculta, a harmonia preestabelecida ou potencial do fluxo da vida; ganhamos repentinamente um olhar não dual que nos mostra uma conexão inesperada entre os eventos mentais e os eventos físicos; e que talvez estes sejam inseparáveis de um modo que todavia não somos capazes de compreender. No entanto, uma cognição não dual contínua, presente nos estados psicodélicos, nos estados meditativos, e também, de modo confuso e obnubilado, nos estados psicóticos, é um salto profundo e surpreendente na nossa experiência da realidade. Talvez sem uma compreensão metafísica, epistemológica e ontológica da realidade não dual seja impossível adquirirmos uma verdadeira compreensão da psicose e também de outros estados não ordinários de consciência. Na não dualidade todos os fenômenos são autorreferentes, mas de um modo peculiar e assombroso: a consciência que observa o Universo cessa sua limitação individual e contempla a si mesma única, na sua experiência do Universo e de si mesma. Tudo faz referência a ela, mas não enquanto um ser individual de carne e osso: enquanto o princípio consciente da realidade inteira e os fenômenos mentais, que antes estavam isolados dos fenômenos externos, podem ser então vistos nitidamente como entrelaçados simbolicamente com tudo que acontece – esse fato é contínuo, mas não é decodificado pela mente dual na maior parte do tempo.

Escultura dual

A sincronicidade desvela a linguagem psíquica que é a base do texto do mundo.

A linguagem de nossa mente parece desacoplada da linguagem do Logos, da mente da realidade, mas esta é a barreira ilusória. Uma cognição de sincronicidades contínuas nos mostraria isso de forma abrupta e até mesmo chocante. É essa percepção que se desdobra na transição ontológica para a não dualidade e que irrompe de modo desorganizador na experiência da psicose. O sujeito pensa que é o centro da realidade, que tudo faz referência a ele, que ele é Deus – e por aí vai – porque de fato ele toca nessa verdade metafísica. Porém, há um cruzamento de tipos lógicos que impede que ele diferencie a ordem natural da sua individualidade e a ordem supernatural ou metafísica que se mostrou a ele. Possivelmente, a instabilidade ontológica que caracteriza o self na psicose seja a causa para essa abertura mística espontânea; a quebra do self individual, intensamente almejada na prática espiritual ocorre de modo inesperado e sem os preparos prévios que garantem uma transição não confusa para o novo estado. Esse é um ponto muito importante. Sem uma reconsideração da validade metafísica e epistemológica da experiência da psicose nunca será possível curá-la; de fato, aqueles que a consideram desse modo, como Jung, Assagioli, John Weir Perry, Freida-Fromm Reichmann, Ronald Laing e Loren Mosher, desenvolveram metodologias que curaram genuinamente seus pacientes.

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É claro que podemos nos perguntar por que um processo de transformação da consciência tão radical, antes restrito aos místicos mais devotados, aos manuais mais obscuros, ganhou presença no corpo psíquico coletivo de forma tão súbita e aberrante. Talvez o psiquiatra Richard Maurice Bucke tenha tocado em parte da resposta quando concebeu a consciência cósmica como o próximo estado evolutivo da espécie. Talvez uma nova condição evolutiva, como ele profetizou, seja de difícil emergência, um processo complexo enquanto ocorre, não compreendido pela consciência coletiva. Seria análogo ao que ocorreu na emergência da autoconsciência, uma era demais remota para que tenhamos um vislumbre direto dela, a não ser nas aterradoras experiências do estado psicodélico e do sonho. Neles vislumbramos um pouco do que foi a experiência da realidade antes de termos um self, um ego sólido; este que hoje é o maior empecilho na transformação da consciência que se apresenta como a iluminação espiritual, ou o despertar, foi no seu momento um evento histórico no desenvolvimento da consciência.

Há um salto próximo para a nossa espécie. A consciência cósmica, o momento em que o homem perceberia que a totalidade do cosmos é o seu próprio ser. É a saída de um mundo para entrar em um novo. É o despertar de um grande sonho. É a percepção de que somos uma única Mente em curso de se manifestar. Pode-se sentir isso no ar. Um mundo perece para o surgimento de um novo, e esse novo implica uma transformação total da percepção, da experiência do ser. Uma fronteira da consciência será fundamentalmente transposta.

Sobre o autor

Daniel Rezinovsky

Daniel Rezinovsky é psicoterapeuta, escritor e artista plástico. Já teve o seu trabalho divulgado na RPCTV, Rádio CBN, Paraná TV, “Revista ÓTV”, “Revista Ser Espírita” e jornal “O Globo”. Coordena o canal de espiritualidade no YouTube Rompendo o Véu, e é autor do livro “Encontro com o Absoluto”, lançado em 2018.

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