Autoconhecimento

Somos uns boçais?!

Mulher dentro do carro, vestida de preto , com a face preocupada e com a mão na cabeça.
Escrito por Juliana Meyer Luzio
Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos

E perdem os verdes

Somos uns boçais…

boçais

Há praticamente seis meses, me pego cantando essa música diariamente e isso ocorre quando estou pedalando. Às vezes, eu a cantarolava ao atravessar um farol vermelho, sim, todos fazemos isso. Mas ao começar a circular por aí de bicicleta, foi assustadora a sensação de como de fato somos uns boçais.

Boçal, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (edição 2004), significa ignorante, rude, tosco; desprovido de inteligência, sensibilidade, sentimentos humanos; besta, estúpido, tapado…

Somos totalmente desprovidos de sensibilidade quando atropelamos os outros apenas por estarmos apressados, como se só nós estivéssemos, como se só a nossa pressa, os nossos horários e compromissos importassem, nada mais.

Somos rudes quando fechamos os outros, grudamos em suas travesseiras exigindo que parem para passarmos ou que corram mais do que nós para não nos atrapalhar ou atrasar. Sim, porque nunca somos culpados pelos atrasos, mas sempre o entorno, como o trânsito, as pessoas lentas, a chuva…

Somos estúpidos ao xingar, buzinar e disparar olhares de morte àqueles que insistem em obedecer os 20, 30, 40km/hora.

Tenho me dado conta do quanto o trânsito reflete a educação e cultura de um povo. Nas ciclovias, por ser um espaço pequeno, isso fica muito gritante, todos os dias vejo desrespeito, agressividade, ansiedade, pressa absurda e mau humor.

E esses comportamentos não são apenas de quem está na direção de um veículo, seja ele qual for (carro, moto, ônibus, bicicleta, entre outros), os pedestres fazem parte desse movimento tosco de quebrar regras e invadir o espaço do outro.

Na primeira semana que começamos a usar a bike (digo “começamos” porque é o meio de transporte que uso para levar e buscar o meu filho de 4 anos à escola, então, na maioria do tempo que pedalo, estamos juntos), levamos um tombo para não atropelarmos duas velhinhas. Sim, precisei cair e derrubar o meu filho porque duas senhoras andavam pela ciclovia sem olhar para o lado, como donas exclusivas de uma via inteira. Todos os dias tenho que fazer paradas forçadas porque muitas pessoas simplesmente atravessam a ciclovia sem nem ao menos olhar para o lado.

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Enquanto os motoristas e ciclistas correm mais do que podem e fecham mais do que devem, os pedestres atravessam fora da faixa, andam, correm nas ciclovias e nas ruas e todos nós, motoristas, ciclistas e pedestres, xingamos mais do que precisamos e avançamos os sinais vermelhos, uma pena, pois assim perdemos os verdes.

Em nome de quê? Para que estamos perdendo os verdes?

Para chegar primeiro? Cumprir meta? Continuarmos na ilusão de que estamos vivendo? Para que tanta pressa e desrespeito?

Corremos contra o tempo, corremos de nós mesmos e de relacionamentos íntimos. Corremos o tempo todo para conseguir algo que está lá na frente e, no entanto, perdemos o que está bem perto.

Todas as vezes que paro e espero um sinal vermelho se tornar verde, reparo no que está à minha volta, olho para as pessoas que passam por mim, sinto a brisa batendo e o sol aquecendo o meu corpo. A cada vez que me deixo parar e esperar o verde, eu respiro e, assim, me percebo.

Afinal, acho que fico cantarolando essa música de Caetano Veloso para me lembrar o tempo todo que tenho escolha entre ser uma boçal ou aquela que sabe esperar. Que sabe que o sinal verde vai acender, mesmo que pareça demorar. E que ele me trará muito mais do que toda e qualquer corrida, ele me trará o tempo, não o contrário, como todos pensam. Ele me trará o tempo precioso da apreciação!

Acreditar que o sinal verde vai abrir e esperar por ele é saber internamente que a vida tem o seu tempo: o de semear, de regar e aguardar para colher. A vida é movimento, estamos sempre para lá e para cá, porém ela também é pausa, em menor proporção e por isso que as pausas são tão importantes. Por serem raras, precisamos vivenciá-las e respeitá-las.

Saber parar e esperar os sinais verdes é confiar na vida, é entregar-se ao que ela tem para te oferecer. É estar receptivo para essa oferenda, sem dúvida, é saber que não precisamos arrancar o que é do outro, que não precisamos colher à força uma promoção. É saber que um sorriso, um olhar e uma brisa no rosto são tesouros do caminho, presentes que estamos deixando jogados pelas ruas.

Pare nos sinais vermelhos, não corra tanto, não faça ultrapassagens perigosas para você e para o outro, não atravesse fora das faixas, respeite os espaços e se surpreenda com o tempo que ganhará no final do dia. Se surpreenda com o seu rosto menos sério e sem tantas rugas de expressão. Receba e retribua os olhares, sorrisos, bons dias e boas tardes que terá pelo caminho, posso te garantir que isso te fará ver as flores e as cores da vida e ela se tornará mais bela.

“Será que apenas os hermetismos pascoais

Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão dessas trevas

E nada mais?

Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome, de raiva e de sede

São tantas vezes gestos naturais

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo mais fundo

Tins e bens e tais”

Podres Poderes (música lançada em 1984, no álbum “Velô” de Caetano Veloso).


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Sobre o autor

Juliana Meyer Luzio

Terapeuta que constrói sua clínica através de um espaço que integra fala, consciência corporal e quietude, tornando possível uma reconexão com o que há de belo, delicado e muito forte em nós - nossa saúde.

Formada em Psicologia, Psicanálise, Terapia de Integração Craniossacral, Transmutation Therapy, entre outros, está sempre em busca de conhecimentos que agreguem, em seu dia-a-dia maneiras, diferentes de olhar a vida.

Atualmente, além de sua clínica, lançou a Îandé, onde tem se dedicado à arte de criar e costurar produtos exclusivos e cheios de carinho.

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