Autoconhecimento

Violência contra a mulher

Mulher com o semblante triste. Ela está com um olho roxo e algumas manchas roxas próximo a boca demonstrando sinais de que foi agredida.
123RF
Escrito por Sandra Magrini

A história de Maria: 44 anos dormindo com o inimigo 

Maria… Simplesmente Maria…Como tantas outras Marias deste nosso Brasil… Nasceu e cresceu. Maria trabalhou. Casou-se numa igreja Matriz. Teve dois filhos. Uma vida repleta de sonhos e esperanças. Amor e felicidade prometiam um bom futuro.

Retrato de uma mulher com o semblante de desespero.Mas como Maria poderia imaginar que o seu mundo não passava de uma ilusão que ela criara em sua mente e que ela literalmente estivera dormindo com o inimigo durante 44 anos? Como pensar que a vida de Maria seria roubada de suas próprias mãos sem que ela se desse conta nestes anos todos do que estava acontecendo ao seu redor? Mistura do Real com o Imaginário. E Maria ia sobrevivendo e criando seus dois filhos com muita dificuldade diante de um casamento perfeito na imagem da cultura, da religião e da sociedade.

Os anos se passaram e o príncipe do início do namoro não se transformou – ele não tinha em quê se transformar. Ele apenas revelou quem era para Maria. Mostrou sua face verdadeira para Maria. Tudo isto dentro de casa, dentro do próprio lar que deveria representar o cuidado e a segurança em relação aos medos do mundo externo, mas que apenas mostrou as garras de um lobo mau em pele de cordeiro, enquanto a imagem deste ser continuava ilibada e irrepreensível diante da sociedade.

Maria adquiriu uma patologia degenerativa que no futuro poderia deixá-la numa cadeira de rodas. Maria foi se fragilizando. Maria foi perdendo o controle da situação. Vivenciou uma verdadeira ambivalência psicanalítica – um casamento socialmente invejável, mas um verdadeiro terror dentro de quatro paredes, que somente as Marias que vivem sabem o que digo. Neste momento, ela percebeu que estava realmente dormindo com o inimigo. Consolidou a crise de Identidade de Maria. Em todos estes anos não sabia mais quem era.

Mulher com as mãos tampando o rosto.

No início, o namoro, a paixão, o encantamento, as gentilezas, as promessas e juras de um amor eterno. 

Logo vieram os dois meninos. Com a convivência, Maria começou a descobrir que havia se casado com uma pessoa que não conhecia, então o castelo de areia ruiu ao vento.

A ilusão se partiu diante da realidade, mas mesmo assim Maria aguentou e viveu ao lado do opressor por quase meio século de existência.

Quando se casou era apenas uma menina pura, corajosa, humilde e cheia de sonhos de construir um lar acolhedor, amável e saudável.

Mas nada disto aconteceu. Ela viveu estes anos todos com o opressor que, em vez de gentileza, a tratava com desprezo, silêncio, humilhação, o que fez aparecer pornografia, agressões sexuais, humilhações sexuais, afrontas, desconfianças e, por último, Maria sofreu estupro e descobriu um passado com atitudes de pedofilia. Como Maria aguentou viver 44 anos calada e neste silêncio velado? 

Neste contexto, ela já não era Maria – o ser humano Maria, um SUJEITO com desejos e vontades próprias –, mas um OBJETO desse ser humano denominado homem num casamento socialmente e religiosamente perfeito.

O silêncio, a inércia, a passividade e o consentimento roubaram a vida de Maria por 44 anos.

Mas a história desta nossa Maria, como a de tantas e tantas Marias, terminou assim?!

Não, definitivamente não! Puro engano. 

Mulher loira de cabelos cacheados com o olho machucado e sua expressão é de tristeza.Não. A história de Maria não terminou assim. Algo mudou no mais profundo interior de Maria. Ela já não era mais a mesma. E os conceitos e preconceitos desta sociedade ocidental vitoriana e supostamente cristã, com sua falsa religiosidade, já não tinham o poder de deter as ações e atitudes de Maria – ela rompeu o silêncio, saiu de casa e experimentou uma sensação de liberdade não sentida desde a infância!

Psiquicamente, algo aconteceu com Maria, como um verdadeiro parto mental em que nasce algo bom, novo e inédito na vida adulta. Algo aconteceu dentro da saúde e da estrutura mental de Maria e ela agiu e se libertou – da mente às atitudes.

Este artigo foi escrito em homenagem a tantas Marias que sofrem neste imenso Brasil – tanto as que, a exemplo desta nossa Maria, conseguiram se libertar, como aquelas que por algum motivo ainda não conseguiram, mas quiçá conseguirão em breve, porque no momento ainda vivem subjugadas, desprezadas e aniquiladas porque vivem com um parceiro ou parceira que as maltratam, humilham sexualmente e as reduzem a um nada tão insignificante que a pessoa de fato passa de uma condição de SUJEITO para a condição de OBJETO; ou seja, já não é alguém destacado como um sujeito de direitos, criado por Deus, feito à imagem e semelhança do criador, mas um objeto para satisfazer as necessidades sexuais do outro e cumprir atividades serviçais.

Este artigo dedico a todas as Marias, em especial a esta nossa Maria que teve a honra e a coragem de se desvincular dos preceitos da sociedade religiosa e machista brasileira, que determina que toda atitude do homem é louvável e destinada ao seu bel-prazer.

Psicologicamente, gostaria de apontar algumas considerações acerca das mulheres que sofrem e padecem por estarem em relações doentias e perniciosas e tentar levantar alguns questionamentos do porquê tudo isto acontece, fazendo com que a mulher permaneça numa situação de violência sexual e agressões e, por vezes, até de morte.

Mulher com as mãos sobre o rosto.

O que de fato acontece na mente das pessoas que se submetem a situações de risco, dor, sofrimento e humilhações domésticas? Por que falta indignação, revolta e atitude contra o opressor? 

É certo que, pelas estatísticas brasileiras, ocorrem diariamente cerca de 606 casos de violência doméstica e 164 casos de estupros contra a mulher. 

Os dados matemáticos denotam que cerca de 4.473 mulheres morrem por ano – fora os casos que não são documentados – e 943 são vítimas de feminicídio (morte em decorrência da relação).

Mais ou menos uma mulher morre a cada duas horas – doze mulheres por dia, no Brasil.

Este presente artigo serve apenas para iniciar uma reflexão acerca dos motivos e das possibilidades dos motivos pelos quais uma mulher vítima de tantos abusos e maus tratos permanece em silêncio, sofrendo calada casos de agressões, incestos, pedofilias, abusos sexuais, físicos e psicológicos, vivendo sozinhas e sem forças para experimentar algo diferente ou mesmo tentar mudar.

Silhueta de uma mulher com o punho cerrado e levantado ao alto como sinal de resistência.

Deste modo, encerro este artigo levantando alguns questionamentos como:
Por que a sociedade brasileira é tão machista, a ponto de o ser chamado homem tudo pode em detrimento das mulheres?
Por que, muitas vezes por questões religiosas e culturais, estas mesmas mulheres ficam do lado destes homens e condenam-se umas às outras?
Por que até mesmo encobrem e negam situações de agressão e até pedofilia?
Por que estas mulheres geralmente fiéis são depositárias de uma inveja coletiva em relação àquelas que não conseguem se libertar?

Maria, minhas honras e minha incondicional admiração, Maria! Você hoje representa a quebra do silêncio e das Marias que tanto sofrem caladas!

E o que será do futuro de tantas outras Marias? 

Agradeço as contribuições da dra. Renata Zoppello.


Você também pode gostar de outro artigo dessa autora. Acesse: Ser gay, escolha ou uma condição inata?

Sobre o autor

Sandra Magrini

Escreve sobre áreas da Psiquiatria, Psicologia, Psicanálise, doenças mentais, medicações, Teologia, Psicopatologia, abuso sexual infantil e questões relacionadas à homossexualidade.

E-mail: magrinisandra8@gmail.com

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