Convivendo Educação

Texto para a gente parar de achar que só o conhecimento formal é necessário

Escrito por Rafael Mansur

Não sei onde você está lendo este texto neste exato momento, mas saber onde ele foi escrito e dentro de qual contexto faz total diferença para o entendimento destas palavras. Escrevo parado dentro do carro, com as pernas esticadas sob o painel em uma quinta-feira de manhã, a saber, dia normal de trabalho (ou dia útil, como alguns preferem).

Por descuido deixei o farol do carro ligado e ele acabou perdendo a bateria. Tentei dar partida no carro e ele só tremia e não ligava, hesitou duas ou três vezes e meu coração tremia tanto quanto ele sabendo da possibilidade de ligar. Não ligou.

Arredo o banco para trás, estico minhas pernas e começo a ler o Umberto Eco que vem me acompanhando estes dias para me ajudar nesta sociedade líquida. Durante a leitura resolvo mais uma vez tentar dar partida no carro, e não funciona. Virei a chave 5 vezes pedindo aos santos que me ajudassem. Pesquisei no Google qual seria o padroeiro dos motoristas e de fato existe (nem sabia que existiam motoristas na época dos santos). Ele não pode me ajudar, o problema nesse caso era com a máquina, e não com o motorista. Pedi a Hefesto, então, que me ajudasse e nada fez o deus grego que trabalha com louvor ao metal.

Com aborrecimento no rosto, paro de tentar e vem uma luz divina enviada a mim: o manobrista da rua. “Meu rapaz, assim vai estragar o carro. No tranco vai… quer ajuda?”. Eu quero muita ajuda, o que eu mais queria era ajuda. Ajuda demais, mas disse que não queria. Já havia chamado o seguro. Ele insistiu: “Mas no tranco vai, não precisa de seguro”.

Eu recusei novamente, ainda brinquei: nem minha vida pega no tranco, quem dirá o carro. Eu ri, ele não. Ele mais uma vez insistiu e eu mais uma vez neguei, disse que esperaria o seguro. Foi então que ele me disse a frase que é a base de todo este texto: “Não quer tentar no tranco porque não sabe, esses jovens de hoje não sabem fazer um carro pegar no tranco, aposto que nem declarar imposto de renda sabe”. De fato, não sei.

Ele falou isso e foi embora manobrar carros, oferecer o seu conhecimento a quem de fato merecia. Claro que me deixou incomodado. Aí ainda esperando o seguro (mas muito tentado a pedir ajuda), resolvi escrever este texto aqui. Fazer o carro pegar no tranco é algo que eu deveria ter aprendido. Declarar imposto de renda também. O que eu estava fazendo este tempo todo na escola que não me ensinaram nenhuma dessas duas habilidades?

Estou aqui parado esperando alguém que tem esse conhecimento para poder ser salvo. Fazer um carro pegar no tranco é uma das pequenas coisas de adulto que a gente sabe que vai se deparar e que nunca aprendeu. Nós, educadores, temos a mania de falar com o peito cheio de orgulho que a escola prepara para vida. Que vida?

A gente não está dando conta de ensinar como fazer um carro pegar no tranco. A gente mal sabe como declarar o imposto de renda, mas não se preocupem, sabemos ensinar como ninguém como calcular as tangentes. A verdade é que a gente terceiriza o que é necessário e prático e fica com alguns conhecimentos importantes, sem dúvida alguma, mas que não sabemos tão bem como utilizá-los. Não saber fazer um carro pegar no tranco é só um exemplo simples e fútil. A realidade é mais densa.

Aluno sai da escola sabendo as ligações iônicas, mas bate em travesti. Nesse caso ele está formado? Está. E prontíssimo para viver em sociedade (a que está sendo construída, pelo menos). Parece que é para isso que estamos nos organizando. Parece que não precisamos de quem sabe fazer o carro pegar no tranco e faz o próprio café, e arruma a própria sujeira. Conseguimos pagar por isso.

Parece que o que a gente precisa é de pessoas que saibam isolar a variável como ninguém. Parece bobo, né?! Texto raso sem fundamento escrito sentado no banco do carro. Não é não. Ele não é sobre saber ou não saber fazer pegar o carro no tranco. Ele é sobre as nossas prioridades no mundo do conhecimento.

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Ano que vem vou pagar alguém para declarar meu imposto de renda. O manobrista não. E pela forma que ele trata as pessoas ele é alguém legal. Não atravessa a rua quando vê um negro ou um gay, ajuda homens e mulheres a manobrar com a mesma paciência. Este texto foi escrito no tempo de dois e meio rotativos de estacionamento e o seguro ainda não chegou, talvez seja hora de pedir ajuda a quem realmente sabe.

“Seu manobrista, faz favor… qual seu nome? Me ensina aqui como que faz e me ajude a fazer.” – Acho que vai ser o começo para um novo aprendizado…

Sobre o autor

Rafael Mansur

Graduado em pedagogia pela UEMG com MBA em gestão de projetos pela USP, Rafael Mansur desenvolve projetos educacionais há oito anos e culturais há seis. Premiado nacionalmente por quatro projetos de educação, Rafael é o idealizador e curador da Bienal do Livro de Contagem, que segue para a sua terceira edição.
Em 2020, Rafael assumirá a curadoria do I Congresso Internacional de Educação para o Desenvolvimento Sustentável (Belo Horizonte) e a curadoria de uma das casas parceiras
da Flip 2020.

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