Comportamento Convivendo

Vida e Morte: novas relações

Crianças com máscara e mãos em frente ao corpo
Escrito por Márcia Leite

Este ano está um tanto difícil. Aliás, o de nossa família já começou nos trazendo um sentimento com o qual não havíamos tido um contato tão próximo. É um misto de batalha incansável com derrota infindável.

Logo nos primeiros dias do ano, meu pai se foi, depois de anos enfrentando e combatendo uma enfermidade decorrente do hábito de fumar. Mesmo tendo abandonado o vício na década de 1980, a conta veio com juros e correção, arrancando-lhe a saúde, mas não a vontade de viver.

Rosto de mulher com lágrimas escorrendo bem próximo
Foto de Karolina Grabowska no Pexels

É uma dor que rasga o peito, mas quem cultiva amor pelos seus não quer saber que um indivíduo sofra, e assim se pratica a empatia, e assim a passagem fica menos pesada.

No segundo mês de 2020, veio o feriado de Carnaval, durante o qual foi noticiado o primeiro cidadão diagnosticado com coronavírus, com a tarja preta de “vindo do exterior” e a classificação inicial de “doença de rico que pode viajar para o exterior”.

E, de repente, os números foram crescendo, as pessoas se contaminando, os médicos com muitos porquês. Planejamento, estratégia, protocolo, distanciamento social horizontal (e vertical) são palavras que entraram no vocabulário corrente. Nada de beijo, nada de abraço, nada de festa, nada de agrupamentos. Corre no mercado, corre na padaria, exercícios longe das academias, não toquem em nada. Água e sabão e esfregue por 30 segundos; na sua ausência, álcool gel e esfrega. Água sanitária na máscara, não toque na máscara, tire a máscara somente pelas alças, leve vários saquinhos para as máscaras. Ao chegar em casa, lave seus sapatos, lave suas roupas, lave seus cabelos, lave suas compras, deixe no sol. Descarte sacos, sacolas, caixas, jogue fora. Se usar luvas, descarte em saquinhos fechados. Chás, sucos, água, tomem com frequência, mantenham-se hidratados. Deixem as janelas abertas, mesmo estando frio. Fiquem distantes: um metro, dois metros, cinco metros, dez metros, vinte metros, não fiquem perto.

Amigas passeando com seus cachorros em parque com máscaras nos rostos
Foto de Gustavo Fring no Pexels

E são muitas as informações, e decisões, e questões. Como passear com meu animalzinho? Levo saquinho para a máscara, para recolher a sujeira, para pôr nas patinhas? Dou banho nele na volta? Quem se lava primeiro? Devo mesmo sair com meu pet? Como limpo os alimentos? Posso comer na rua? Será que quem preparou se cuidou? Vou a pé? Vou de transporte público? Vou de carro? Não vou?

As cidades pararam as suas atividades. Muita gente sem o sustento garimpado no dia a dia, reclamando pela migalha que o governo forçadamente disponibilizou. Filas imensas e aglomerações inoportunas surgiram neste período. As contas chegando sem clemência. A fome batendo às portas de famílias confinadas em casas minúsculas e sem estrutura sanitária, que foi negligenciada por tanto tempo. Demissões e empresas encerradas. Diversas se reinventaram, buscaram novas formas de sobreviver, incluindo auxílio ao próximo. Outras ainda buscam um novo caminho (e vão achar) para garantir que seus funcionários poderão sustentar suas famílias.

As vaidades foram colocadas de lado por várias pessoas: cabelos crescidos, barbas retiradas, batons aposentados, roupas repetidas (muitas manchadas de água sanitária), unhas sem esmalte, fios brancos aparecendo. A redescoberta do novo velho “eu” escondido na rotina corrida, encontrado naquele cantinho do espelho manchado pelo vapor do chuveiro.

Morreu um, morreram 20, morreram muitos, morreram demais. E houve menosprezo, houve desespero, houve muita dor: de não se despedir, de não poder ajudar, de não conseguir socorrer, sem leitos adequados para acomodar, sem remédio eficaz para medicar, sem vacina para prevenir.

E a morte não escolheu endereço, não escolheu bolso, não escolheu origem. Ela chegou e levou.

Nem chegamos ainda ao meio do ano, já temos notícias que jamais pensaríamos que ouviríamos em toda nossa existência.

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No meio disso tudo, nasceram e renasceram muitas novas vidas e vidas novas, em um turbilhão de emoções, onde o medo impera, a incerteza dita as regras, a dedicação é heroica, os dias passam velozmente, o tempo é o maior inimigo. Vitórias vieram, e ainda virão muitas outras.

Sem perder as esperanças, enfrentando com a cabeça erguida e os cuidados ensinados diariamente, passaremos por tudo isso e nos encontraremos com um mundo novo, cheio de velhos problemas, somados aos novos.

Sobre o autor

Márcia Leite

Graduada em Farmácia e atualmente estudante da área de Humanas, mostro interesse em diversos temas. Incomodada com questões sociais e que mexem com a convivência e a saúde das pessoas.