Ela fritava bolinhos em uma gordura escura e envelhecida. A cabeça, envolta em um pano de prato branco e desfiado, dava-lhe um ar demente e desprotegido. Estava lá, há mais de trinta anos, desde os doze, quando a mãe lhe prometera: vão te dar estudo, minha filha. Mas o estudo não veio, só as trouxas de roupas imensas, que levavam longe, na bica, para esfregar, secar e enxaguar.
Depois, vinha com elas molhadas, equilibrando na cabeça pequena que ainda não terminara de crescer. Devia ser por isso, pensava, que não desenvolvera direito. Seu pai era alto, assim como seus irmãos e irmãs, mas não ganhou altura.
Além das roupas, ainda buscava lenha para o fogão do terreiro, onde, desde então, fazia as frituras, o sabão de cinzas, os doces no tacho e deixava as carnes, o toucinho e a linguiça de porco para fumigar. Ficava um cheiro bom que nela não ficava tão bem, sempre fumegada e engordurada. Isso fazia mais de trinta anos, calculava.
A memória, nem tão firme assim, às vezes, embaralhava. Misturava a rotina diária com os sonhos diários que tinha antes de dormir, desde que tinha doze e a mãe lhe prometera: vão te dar estudo, minha filha, e carteira assinada. Não chegou a conhecer a carteira. Ainda não tirara os documentos. A patroa dizia: sem documentos não tem como assinar a carteira, dia desses vamos levá-la para fazer o retrato. Isso, bem, também já fazia mais de trinta anos, calculava, com a memória um pouco fraca, que às vezes embaralhava o dia a dia sempre igual, com os sonhos sempre iguais que tinha antes de dormir.
Na cama estreita, a mesma desde que era uma menina magrinha de doze, ficava deitada, olhos fixos no teto, sonhando acordada com a vida que a mãe prometera: vão te dar estudo e carteira assinada, minha filha, e quando você se formar, volta para cá e vai ser professora da meninada. Depois, casa com o filho do seu Teobaldo e vai morar na casa grande da fazenda. Não voltou mais. Não estudou. Não tirou retrato nem carteira. Imaginou, por vezes, pegando o documento na mão, olhando para ela mesma, em preto e branco, parada, oficial e, debaixo da foto, a assinatura, letra firme de moça estudada que vai ser professora. Fizera tudo que a mãe mandara. Foi moça boa, correta, trabalhadeira. Não sabia o que dera errado. É sina, ouvira dizer. Será?
ATENÇÃO: O trabalho infantil doméstico é reconhecido como uma das piores formas de exploração de crianças em todo mundo. Normalmente, essas crianças são cedidas por famílias pobres de zonas rurais ou urbanas a famílias com melhores condições e pouca consciência do crime que praticam.
A atividade é considerada “exploração infantil” pela Organização Internacional do Trabalho. No Brasil, mais de 400 mil crianças exercem trabalho doméstico. As crianças que trabalham como domésticas em casa de terceiros compõem um “exército invisível” de mão-de-obra, que está sujeita à toda sorte de exploração.
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Por lei, o trabalho doméstico só é permitido para maiores de 16 anos. Se você conhece uma criança nessas condições, faça a sua parte: denuncie.