Filosofia

Filosofia e Literatura Sartre por Filósofo Nilo Deyson

O filósofo Jean Paul Sartre próximo à uma janela repleta de vasos de rosas.
User:T1980, CC BY 3.0 / Canva

Amigo leitor, acredito que você sairá deste artigo maior do que quando aqui chegou, pois eu o preparei com muita dedicação e pesquisa, oferecendo conteúdo educativo e de grande valor. Espero que aprecie.

À esquerda, o título: O FILÓSOFO DA IMPARCIALIDADE PARTICIPATIVA ETERNIZADO PARA HISTÓRIA". À esquerda, mais abaixo, o seguinte texto: "Levantei templos à virtude que me levaram a tocar os céus com os dedos e com a ponta dos lábios, beijar a estrelas. Eis que a liberdade nos faz flutuar entre os céus e universos sem impedimentos, apenas somos uma passagem no tempo enquanto rumo em vida à caminho da eternidade em outra dimensão e imortais nas obras que deixamos. São muitos em mim, todos se sentam à mesa comigo, sem paixões, pois fora da linguagem, tudo é silêncio, sabedoria". À direita, uma pequena biografia de Nilo Deyson e, também, uma foto do mesmo.
Filósofo Nilo Deyson Monteiro / Eu Sem Fronteiras

Nietzsche dizia, em um misto de elogio e lamentação, que Platão, o jovem Platão, era uma espécie de poeta. E que Sócrates, com sua visão a um só tempo autoritária e restrita do pensamento, da racionalidade e da filosofia, é que teria sido o responsável por sua desgraça. Talvez se possa ver aqui uma espécie de conluio entre filosofia e literatura, cuja certidão de nascimento atesta e legitima, por sua ancestralidade, o ponto que tentarei desenvolver neste artigo. Trata-se, ainda que sumária e preliminarmente, de fazer algumas observações que considero pertinentes sobre a relação entre filosofia e literatura em Sartre. E vou me utilizar para tanto de duas expressões que tomo de empréstimo de um dos mais relevantes comentadores de Sartre, o professor Franklin Leopoldo e Silva. As expressões, que terei ocasião de desenvolvê-las com algum vagar, são as de “vizinhança comunicante” e “ressonância ética”. Usarei esses recursos compreensivos do pensamento de Sartre para explorar, basicamente, o estatuto dos gêneros (filosófico? literário? filosófico-literário?) na obra do pensador francês, bem como a controvertida noção de engajamento.

De alguma maneira, a questão sobre a relação entre filosofia e literatura se coloca para todo filósofo que escolhe recorrer a essas duas modalidades expressivas para apresentar seu pensamento, como é o caso de Sartre. Por que articular filosofia e literatura na exposição de um pensamento? Isso pode se dar porque a filosofia seria insuficiente para configurar a totalidade da ordem humana, cuja dramaticidade escaparia a seu escopo (sobretudo se considerarmos o que se tornou a filosofia desde a instauração do modelo platônico, recorrendo, uma vez mais, à interpretação de Nietzsche). Outra maneira de ver a questão é aquela que entende que o filósofo se refugia na literatura para escapar, pela via do concreto, às abstrações da filosofia (nesse sentido, os recursos literários, talvez inexistentes na filosofia, estariam a serviço da concretude de tratamento exigida pela dramaticidade do vivido). Ou, ainda, a literatura teria um papel auxiliar para a filosofia, operando pela mera exemplificação de teses filosóficas (por essa via, a literatura teria papel auxiliar frente à trama conceitual operada pela filosofia). Outra hipótese seria a decisão de tornar mais acessível a um público geral problemas cujo tratamento estritamente filosófico estaria restrito a técnicos e especialistas. Nenhuma dessas hipóteses parece suficiente para esgotar essa questão que permeia a experiência intelectual de Sartre. Contudo nenhuma delas parece totalmente disparatada sob certas perspectivas. Em que medida o problema se coloca aos olhos do próprio Sartre?

Numa entrevista concedida ao final de sua vida, Sartre nos oferece uma resposta, ao mesmo tempo, provocativa e desconcertante. Tudo o que eu escrevi, diz Sartre, foi, a um só tempo, filosofia e literatura. O mesmo Sartre, em outro momento, como que querendo desconcertar ainda mais seus intérpretes, dizia ser a literatura uma maneira de lidar com imagens e a filosofia uma maneira de lidar com conceitos. Sendo, dessa forma, coisas sensivelmente distintas. Cristina Diniz Mendonça traz o exato tom da questão: “Filosofia e literatura ao mesmo tempo? Os romances como forma literária e filosófica? As obras consideradas de ‘filosofia pura’ como forma filosófico-literária? Esse híbrido sartriano é antes um enigma a ser decifrado” (MENDONÇA, 2001).

É preciso dirigir a qualquer pensador da história da filosofia uma pergunta prévia: qual é o projeto que orienta e organiza a totalidade de sua empreitada filosófica, ainda que isso se dê por vezes de maneira aparente ou superficialmente dispersa e multifacetada? Em relação a Sartre, esse questionamento é tanto mais difícil quantas foram as modalidades expressivas que o filósofo escolheu para elaborar sua reflexão: o tratado, o romance, o ensaio, a biografia. E é nesse amplo diapasão que a questão da relação entre filosofia e literatura se coloca para o filósofo. Mas como compreender o lugar que o trabalho ficcional, no sentido da elaboração imaginária e não estritamente conceitual, ocupa no projeto de Sartre?

O filósofo Jean-Paul Sartre.
Reprodução / Eu Sem Fronteiras

Qualquer leitor razoavelmente sistemático da obra de Sartre já se colocou a questão sobre o estatuto de seus textos literários (quando não aquela do estatuto literário de seus textos filosóficos). Uma das respostas possíveis e, em alguma medida, bastante difundida é aquela que pretende que a literatura guardaria, para Sartre, certa relação de dependência e subordinação no mesmo passo em que serviria, em grande medida, para ilustrar teses filosóficas. Seria, segundo essa leitura, uma maneira mais concreta que o filósofo encontrou para tornar mais acessível seu pensamento, por vezes marcado por dificuldades impostas pela exigência conceitual própria à filosofia.

Certamente essa visão razoavelmente restrita da situação entre filosofia e literatura em Sartre já recebeu, à exaustão, sua relativização necessária: por exemplo, quando Thana Mara de Souza nos lembra que filosofia e literatura apresentam, em Sartre, uma relação de interdependência e seriam, em verdade, dois momentos distintos, mas complementares da compreensão da ordem humana.

Em Franklin Leopoldo e Silva, essa dualidade expressiva ganha o estatuto de uma “vizinhança comunicante” por meio da qual o filósofo diz e não diz as mesmas coisas: “Com isso, queremos dizer que a expressão filosófica e a expressão literária são ambas necessárias em Sartre porque, por meio delas, ele diz e não diz as mesmas coisas” (SILVA, 2004).

Em grande medida, como já podemos perceber, esse enigma já estava presente no próprio filósofo. Dizer o mesmo distintamente e expressar uma diferença no interior dessa igualdade porque o meio pelo qual se diz não é irrelevante para a própria constituição daquilo que se diz ou do que se quer alcançar ao dizer.

“Eu sou um filósofo? Ou eu sou um literato? Penso que o que eu trouxe desde minhas primeiras obras é uma realidade que é os dois: tudo o que escrevi é, ao mesmo tempo, filosofia e literatura, não meramente justapostas, mas cada elemento dado é ao mesmo tempo literário e filosófico”. (SARTRE, 1989).

Esse comentário que Sartre dedica à sua própria trajetória nos aponta, num mesmo gesto, para a relação intrínseca entre a expressão literária e a expressão filosófica, tanto quanto exige um esforço de aquilatar justamente o estatuto dessa espécie de híbrido. Ou, para ser mais exato, essa comunicação inusitada ou “passagem interna” que expressa e caracteriza o sentido de uma “vizinhança comunicante”. Uma espécie de configuração da relação entre filosofia e literatura em Sartre cuja noção de passagem seria muito mais significativa do que aquela de fronteira para a sua adequada compreensão. Abandono da ideia mesma de fronteira para configurar o problema literário-filosófico em Sartre justamente porque, “pelo contrário, haveria uma forma de passar de um a outro que seria uma via interna, sem que, nesse caso, a comunicação direta anulasse a diferença”. (SILVA, 2004).

Também não seria o caso de dizer, de maneira estanque, que a literatura trabalha com imagens enquanto a filosofia é da ordem do conceito. Essa maneira de lidar com a questão ainda soa insuficiente. O próprio Sartre parece ambíguo, ou ambivalente, a esse respeito. Quando perguntado por que, em seus manuscritos literários, havia incontáveis correções ao passo que elas eram quase inexistentes nos manuscritos filosóficos, o filósofo dizia que em filosofia havia apenas uma maneira de dizer o que se quer, enquanto há outras tantas maneiras em literatura. Contudo o mesmo Sartre confessava que teria abusado de imagens numa obra como “O ser e o nada”. Isto é, resta ainda a questão de como equacionar essas duas modalidades expressivas recorrentemente usadas por Sartre.

A palavra "literatura" grafada num papel.
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Esse ponto do problema parece apontar para dois regimes cuja formulação esquemática queremos enunciar aqui: o plano das descrições fenomenológicas (estruturais) e o plano das vivências narradas historicamente. Essa chave de leitura é fundamental, por exemplo, quando examinamos o estatuto da obra capital de Sartre, “O ser e o nada”. Um ensaio de ontologia fenomenológica em que se recupera termos e questões da tradição filosófica, mas não o faz sem operar uma espécie de torção ou leitura subversiva. Também ali o problema da mistura de gêneros se evidencia.

Muito já se falou sobre a apropriação sartriana da fenomenologia de Husserl. Frequentemente se enfatiza a distância entre Sartre e Husserl nesse aspecto, como se a questão estivesse num mero mal-entendido na leitura que Sartre realiza de Husserl. Propor um tratado de ontologia fenomenológica (uma espécie de quadrado-redondo — e as zombarias continuam no mesmo tom…), seria a expressão máxima desse mal-entendido. Ora, se nós somos capazes de entender o estatuto da fenomenologia em Husserl (uma fenomenologia da razão, que não se confunde com uma fenomenologia do ser), Sartre também não o seria? Parece-me que a questão central não está nessa querela aparentemente fascinante ao bem-comportado historiador da filosofia.

Aqui, uma vez mais, o professor Franklin Leopoldo e Silva inaugura uma chave de leitura acerca da apropriação subversiva da fenomenologia por Sartre, isto é, aquela que permite realinhar as relações entre o universal e o particular sem que fiquemos presos às noções, respectivas, do mais abstrato e do mais concreto ou ainda de uma simples determinação do particular pelo universal:

“A descrição no plano do universal já é concreta: é isso que diferencia a ontologia fenomenológica do exame tradicional da natureza humana; e a compreensão das vivências individuais pela via da ficção só atinge o plano da existência concreta porque insere o drama existencial particular na estrutura universal do ser da consciência: é isso que libera a narração sartriana da tipologia romanesca tradicional em que, por exemplo, a personagem encarna ou explicita uma essência, o que faz que o indivíduo permaneça na órbita da abstração (SILVA, 2004).

Dito de outro modo, não se trata de compreender as estruturas descritas ontologicamente (na verdade, uma onto-fenomenologia) como se elas fossem um outro nome para o que a tradição chamou de universal, nem, por outro lado, tomar as vivências narradas fenomenologicamente (e historicamente) como sinônimo do tradicional particular ou concreto. A leitura de Husserl teve consequências decisivas na forma como Sartre reelabora o discurso filosófico e certamente ele viu no “retorno às coisas mesmas” a via de acesso ao território de uma abordagem concreta. Contudo é preciso pelo menos indicar que Husserl e Sartre partem de projetos distintos, já que Sartre desde o começo censura as orientações do pensamento de Husserl após as “Investigações lógicas”. Esse novo direcionamento é bastante distinto do interesse primeiro que conduziu Sartre à fenomenologia quando Raymond Aron, no bar Le Bec de Gaz, diz a Sartre que, sendo fenomenólogo, “ele poderia fazer filosofia ao falar de sua bebida” e que “o pensamento de Husserl respondia exatamente às expectativas” de Sartre” (COOREBYTER, 2000).

Efígies de filósofos populares.
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O enigma desse híbrido, filosofia e literatura, passa pela correta compreensão da apropriação da fenomenologia efetuada por Sartre. Pretender um tratado de ontologia fenomenológica, isto é, uma obra para a qual a ontologia não se ocupa do ser enquanto ser, mas da “descrição do fenômeno de ser como ele se manifesta” (SARTRE, 1991) significa, num mesmo gesto, se ocupar da realidade fenomênica e implodir com a primazia do conhecimento. De tal maneira que o fenômeno de ser passa a ser de alguma maneira acessível a nós, pelo tédio, pela náusea, pelas figuras do prisioneiro de guerra, do judeu, da mulher, do homossexual, todos esses elementos, presentes em “O ser e o nada”.

Em “A imaginação”, um texto do jovem Sartre, o filósofo avalia a fenomenologia husserliana nos seguintes termos:

“O grande acontecimento da filosofia de antes da guerra é certamente a publicação do primeiro tomo da “Revista anual de filosofia e de pesquisas fenomenológicas”, que continha a principal obra de Husserl: “Esboço de uma fenomenologia pura e de uma filosofia fenomenológica”. Tanto quanto a filosofia, este livro estava destinado a revolucionar a psicologia” (SARTRE, 2010).

Será preciso ampliar o escopo da influência da fenomenologia no pensamento de Sartre. Para além do confessado papel da fenomenologia na filosofia tradicional e na psicologia empírica, penso que se possa dizer que ela estava também destinada a revolucionar a literatura. Em que sentido? Comecemos a delinear essa resposta a partir de algumas considerações sobre o ensaio de Sartre “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”, assim como pela recuperação de alguns aspectos da apresentação que o filósofo fez para a impactante revista Les temps modernes.

Naquele pequeno texto elaborado em 1933, Sartre se insurge contra a filosofia universitária francesa, o velho espiritualismo francês, representado pelas figuras grandiosas de seus mestres e professores: Brunschvicg, Lalande, Meyerson, Bréhier. Sartre caracteriza essa filosofia como uma espécie de filosofia alimentar, marcada por um espírito-aranha que apanhava e deglutia as coisas na consciência, reduzidas agora a meros conteúdos. Nutrição, assimilação. Assimilação, dizia Lalande, das coisas às ideias, das ideias entre elas e dos espíritos entre eles” (SARTRE, 2005). Essa filosofia falava apenas a língua da epistemologia e estava, qual mônada leibniziana, de portas e janelas fechadas para a realidade histórica, que, no entanto, invadia a mente daqueles jovens estudantes, ansiosos por realizar a filosofia, pelo fazer mundo da filosofia, por uma filosofia que pudesse também falar das experiências concretas de um mundo cuja radicalidade histórica era vivida, de maneira turva e pesada, no dia a dia da Europa.

Esses jovens se apegavam a um lema indicado num livro de Jean Wahl, “Vers le concret” (“Rumo ao concreto”). Na verdade, a direção para o concreto ainda era algo idealista e burguês. Eles queriam partir do concreto puro e encontrar o absoluto da existência. Mas lhes faltavam, confessava Sartre, as ferramentas para escapar da linguagem abstrata e ultrapassada de seus mestres. O marxismo era, de certa maneira, desconhecido, e teria que esperar quase duas décadas para que esses jovens fizessem a “segunda travessia do Reno” para encontrá-lo. Houve, contudo, uma primeira viagem de travessia e descoberta e nela se encontrou a fenomenologia alemã, totalmente utilizada a serviço da contestação da ordem universitária então existente, uma espécie de status quo filosófico.

“Contra a filosofia digestiva do empiriocriticismo, do neokantismo, contra todo “psicologismo”, Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na consciência. Vocês veem esta árvore aqui — seja. Mas a veem no lugar exato em que está: à beira da estrada, em meio à poeira, só e curvada sob o calor, a vinte léguas da costa mediterrânea” (SARTRE, 2005).

Contra a filosofia digestiva universitária francesa, Sartre encontrara a intencionalidade da consciência. Esse conceito husserliano é o antídoto contra os rumos da filosofia universitária. “Toda consciência é consciência de alguma coisa”. Esse o mantra repetido pela geração de Sartre. As coisas não estão na consciência, sequer a título de representação. Elas estão fora, no mundo, no meio das coisas, coisas entre coisas. A consciência não poderia assimilar as coisas, pois suas naturezas são absolutamente distintas. A consciência é um explodir em relação às coisas, mas impossível para elas entrarem na consciência, já que a consciência não tem interior. Ela é puro movimento, uma espécie de vento que ruma às coisas. O mundo se configura, assim, por princípio, exterior à consciência, embora relativo a ela. A consciência, libertada da língua de segurança do velho espiritualismo francês, é um absoluto de existência e não apenas de conhecimento.

“O conhecimento ou pura “representação” é apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” tal árvore: posso também amá-la, temê-la, detestá-la, e essa superação da consciência por si mesma, que chamamos de “intencionalidade”, reaparece no temor, no ódio e no amor” (SARTRE, 2005).

Um homem de roupa social estendendo a palma de sua mão. Sobre ela, uma ilustração 3d de um cérebro.
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Essa virada existencial da filosofia, proporcionada pela fenomenologia, encontra seu correlato na maneira como Sartre vê o trabalho do escritor e a função da literatura. Também a literatura não pode mais se refugiar na vida interior. O escritor está inescapavelmente enraizado em seu tempo. Ele é um autor que fala sobre esta vida, condicionada pela experiência da guerra e, quem sabe, também da revolução. Ele é sempre em situação, inscrito numa realidade histórica, que lhe dá os temas e também as formas. Ele pode sempre escolher o silêncio ou não iluminar certos setores da realidade em benefício de outros, mas diz Sartre: “O escritor está em situação na sua época; cada palavra tem ressonância. Cada silêncio também” (SARTRE, 1999). Trata-se da recusa de uma literatura de sobrevoo, marcada por uma concepção ideológica de arte pela arte. O escritor é sempre e intencionalmente o escritor de seu tempo, um escritor em situação, e não é possível se resguardar na universalidade abstrata dos temas universais porque imortais. “A imortalidade é um álibi terrível: não é fácil viver com um pé no túmulo e o outro fora.” (SARTRE, 1999)

O grande exemplo tomado por Sartre para ilustrar essa literatura da subjetividade como interioridade é Marcel Proust. Qual o velho espiritualismo francês, também Proust representa uma velha ordem posta agora em xeque pelas conquistas da fenomenologia e as imposições de seu realismo. Marcado pelo método analítico na tentativa de compreender a ordem do humano, Proust apenas pode nos fornecer uma imagem abstrata da experiência concreta. “Tal é a origem” [a prisão do método analítico], diz Sartre, “da psicologia intelectualista da qual as obras de Proust nos oferecem o exemplo mais completo” (SARTRE, 1999).

“Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de dádiva e de amor. Ele limpou o terreno para um novo tratado das paixões que se inspiraria nessa verdade tão simples e tão profundamente desconhecida pelos nossos refinados: se amamos uma mulher é porque ela é amável. Eis-nos libertados de Proust. Libertados ao mesmo tempo da ‘vida interior’; em vão procuraríamos, como Amiel, como uma criança que se aninha no colo, as carícias, os mimos de nossa intimidade, pois afinal de contas tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Não é em sabe-se lá qual retraimento que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens” (SARTRE, 2005).

Sartre identifica esse espírito analítico e de interioridade na própria maneira como se elabora a prosa de Proust. Para Sartre, Proust teria confundido a condição comum do homem, que é de ordem metafísica (a necessidade de nascer, de morrer, de ser finito…) com uma natureza humana. É assim, por exemplo, que Proust pensa ser suficiente, para descrever o amor heterossexual de Swann por Odette, partir de sua própria experiência homossexual. Essa identidade entre o amor heterossexual, elevado à condição de padrão e normalidade pela sociedade de Proust (assim como pela nossa), e o amor homossexual, absolutamente distinto daquela experiência, por sua condição de interdição e marginalidade, essa identificação por Proust só é possível por ele se valer desse duplo de interioridade e analiticidade, encarnado no ideal de uma natureza humana. Da mesma forma ele também se vale de sua experiência burguesa para projetar aquele amor de Swann por Odette. Proust impõe, assim, os traços da particularidade (sua condição sexual, sua origem de classe) à condição comum dos homens, “acredita na existência das paixões universais cujo mecanismo não variaria sensivelmente quando se modificasse o caráter sexual, a condição social, a nação ou a época dos indivíduos que as sentem.” (SARTRE, 1999).

Para Sartre, a filosofia e a literatura partilham uma tarefa comum: elucidar e aquilatar as reais mediações entre o particular e o universal presentes no drama da existência humana.

Nem a filosofia tradicional nem a literatura de interioridade parecem suficientes para elaborar essa síntese e essa tensão. O homem vive sempre o universal como particular. “O acaso não existe ou, pelo menos, não da maneira como se imagina: a criança torna-se essa ou aquela porque vive o universal como particular” (SARTRE, 2002). Por essa perspectiva, cabe tanto ao filósofo quanto ao literato viver a contradição e o dilaceramento de tentar superar a insuperável herança de sua classe e de sua infância na elaboração de um retrato adequado da experiência humana. Da mesma forma que os personagens fictícios quedam insuficientes quando mecanicamente se valem de uma suposta natureza humana, da mesma maneira os personagens reais, as pessoas reais apenas são compreendidas numa rearticulação entre o particular e o universal. Quem foi Paul Valéry?, pergunta Sartre a seus contemporâneos. Ele foi um escritor pequeno burguês, dirá algum. Ora, mas nem todo escritor pequeno-burguês foi Paul Valéry e esse ponto é a herança nuclear da apropriação por Sartre da fenomenologia alemã” (SARTRE, 2002).

E é essa rearticulação da compreensão do universal e do particular (um universal singular) que está na base das ideias de “vizinhança comunicante” e “passagem interna” propostas pelo professor Franklin Leopoldo e Silva para a compreensão adequada do estatuto da obra sartriana, exigindo uma modalidade expressiva que não é nem apenas literária, nem apenas filosófica. É que surgem esses recursos expressivos variados, porque assim o exigem as características da ordem humana — nem totalmente conceitual, nem totalmente imagética — que o filósofo se põe a compreender:

“Cremos que seria essa uma forma de resguardar ao mesmo tempo o caráter concreto do universal e a presença do universal no particular. O universal, sabemos, não é uma entidade transcendente; e o particular não é a singularidade isolada. No entanto, o fato de serem comunicantes não implica que a passagem à qual se aludiu seja dada: trata-se de realizá-la, e isso é uma tarefa da consciência histórica, porque a ordem humana é histórica” (SILVA, 2004).

Trata-se sempre de equacionar o problema da interioridade e da exterioridade. Ou melhor, da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade. A literatura e a história são o palco privilegiado do tratamento dessa dimensão. Para Sartre, a história está repleta dessas ocasiões em que a subjetividade se vê em tensão com as condições objetivas e em que é preciso decidir. Veja-se, como exemplo, o caso da luta pelos direitos civis no sul dos Estados Unidos na década de 50 do século passado: o papel de Rosa Parks e as conquistas dos negros no estado do Alabama.

Em torno da noção de “ressonância ética”:

Vejamos agora a noção de “ressonância ética”, fundamental para compreendermos a vinculação entre expressão literária e expressão filosófica em Sartre. Ao final de “O ser e o nada”, Sartre promete uma moral existencialista:

“Mas a ontologia e a psicanálise existencial (ou a aplicação espontânea e empírica que os homens sempre fizeram dessas disciplinas) devem mostrar ao agente moral que ele é o ser pelo qual os valores existem. (…). Todas essas questões, que nos reenviam à reflexão pura e não cúmplice, só podem ter sua resposta no terreno da moral. A elas consagraremos uma próxima obra” (SARTRE, 1991).

Uma pessoa fazendo um gesto de recusa com as mãos. Este é direcionado à uma pessoa que oferece dinheiro a ela.
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Esse prometido tratado sobre a moral, em sentido sistemático, nunca veio a público. O que isso significa? A impossibilidade de apresentação de uma efetiva moral existencialista? Certamente não. Está em curso, no entanto, a impossibilidade de sistematização da ética existencialista em um manual ou tratado, pois a realidade humana institui o valor de sua ação contemporaneamente à escolha de determinada ação. Ao não possuir validade prévia à ação efetiva (são valores à medida em que são escolhidos), eles também não podem figurar em um código de condutas. Donde a presença das questões éticas em praticamente todos os textos de Sartre, constituindo o que queremos indicar com o recurso à noção de “ressonância ética”.

Quando Sartre, pouco tempo após a publicação de “O ser e o nada”, profere a famosa conferência “O existencialismo é um humanismo”, notadamente uma tentativa de vulgarização ou de tornar mais acessível ao grande público as teses fundamentais exploradas em “O ser e o nada”, é surpreendente a presença da temática moral naquele texto. Aparentemente essa maneira de expor seu pensamento pode soar contrastante com as rígidas descrições ontológicas presentes na obra de 1943, mas por que a exposição simplificada e reduzida do pensamento existencial se dá justamente pela problematização de uma moral existencialista? Aparentemente, repito, apenas lateralmente presente em “O ser e o nada”?

Aqui, e uma vez mais, a noção de “vizinhança comunicante” (oriunda da relação entre filosofia e literatura em Sartre) faz par com aquela de “ressonância ética”, que, para cumprir suficientemente a primeira, daria conta de amarrar o multifacetado pensamento de Sartre. Conforme a interpretação do professor Franklin Leopoldo e Silva:

“De forma mais restrita, poder-se-ia dizer que os problemas éticos esboçados em ‘O ser e o nada’ são reencontrados em ‘Os caminhos da liberdade’, e que a maneira como são aí tratados aponta para o modo como serão retomados na ‘Crítica da razão dialética’. Paralelamente, os estudos sobre Baudelaire e Jean Genet só podem ser adequadamente compreendidos se forem tratados como abordagens concretas dos delineamentos éticos esboçados nas questões gerais acerca da existência, como por exemplo a má-fé, o ser-para-si e o ser-para-outro. Essas remissões devem ser entendidas, nos termos enunciados, a propósito da vizinhança comunicante, isto é, não como exemplificações concretas da teoria, mas como algo que aponta para o equilíbrio (instável?) entre o tratamento teórico e o exame da particularidade vivencial. O idiota da família (não terminado, é bom sublinhar) indicaria talvez a possibilidade de realizar tal equilíbrio: nunca saberemos o resultado que teria sido obtido” (SILVA, 2004).

A fim de que possamos compreender o sentido em que se fala em “ressonância ética” para a relação entre filosofia e literatura em Sartre, convém abordar alguns pontos presentes em “Que é a literatura?”, notadamente por causa do conceito de engajamento.

A primeira versão da noção de engajamento em Sartre aparece na apresentação da revista Les temps modernes. Tratava-se ali de indicar o engajamento como uma exigência da literatura e não mera opção ou escolha dentre outras. Nesse sentido, a oposição entre os defensores da arte pela arte e aqueles de uma literatura político-partidária, como o realismo soviético, não se coloca. Estamos engajados assim como estamos todos embarcados, para usar a expressão de Pascald.

“É possível falar numa “ressonância ética” na concepção de literatura de Sartre porque leitor e escritor estabelecem entre si uma relação ética, pois a literatura é reveladora da liberdade e das contingências humanas, mesmo que ela se apresente como uma necessidade na contingência, quer dizer, forja a necessidade do mundo a partir de sua contingência originária. A literatura arranca as coisas de sua ingenuidade primeira. Depois de nomeada e lida nenhuma situação pode ser simplesmente negligenciada, ninguém pode verdadeiramente se dizer inocente diante do mundo” (SARTRE, 1948).

Mas como se daria esse poder e alcance da literatura capaz de arrancar as coisas de sua ingenuidade primeira e atingir o âmago da questão ética? Em primeiro lugar, é preciso lembrar a distinção que Sartre opera entre a literatura e as outras formas de manifestação artística. Não, a pintura e a escultura não se relacionam com seu objeto da mesma maneira que a literatura; não há paralelismo entre as artes. Mesmo no interior da própria literatura, a prosa é essencialmente diferente da poesia. Enquanto o poeta lida com as palavras como se fossem coisas, o escritor se utiliza delas para visar algo que lhe é diferente. Ele está em busca daquilo que ela significa, em resumo, ele trata as palavras como signos (SARTRE, 1948). Para o escritor (prosa) a linguagem é significação, por isso apenas nesse caso podemos falar de engajamento ou, pelo menos, a prosa tem um modo próprio de se fazer engajada.

Só a prosa descreve e compreende a realidade humana, nos termos do engajamento sartriano, porque só ela lida com as palavras como signos, remetendo-nos a algo para além delas. O pintor, quando pinta um quadro, o faz se utilizando das tintas, dos traços, com a intenção de criar uma coisa; o poeta serve às palavras encarando-as como coisas; mas apenas o escritor busca o sentido para além das palavras, delas se servindo como instrumento de sua ideia (SARTRE, 1948).

É pelo exame atento da arte de escrever que Sartre pretende responder a seus críticos mais severos, que recusaram exatamente a noção de engajamento: “E já que os críticos me condenam em nome da literatura, sem jamais dizerem o que entendem por isso, a melhor resposta a lhes dar é examinar a arte de escrever, sem preconceitos”. (SARTRE, 1948). O primeiro ponto que nos permite falar em engajamento na literatura (prosa) e não nos autoriza a estendê-lo às outras artes diz respeito justamente à noção de significação. Enquanto para a prosa a palavra é signo que remete à significação, nas outras artes o que há é uma significação tímida, obscura. A palavra na prosa é um meio de acesso à significação. Não se exige das outras artes e dos outros artistas o engajamento, pelo menos não o mesmo tipo de engajamento, porque só na prosa temos uma tomada de posição em relação às coisas externas, mas só na prosa a palavra nos encaminha ao exterior, por isso faz sentido perguntar os motivos do escritor.

Uma aquarela e pequenos pincéis.
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As artes significantes são, assim, o lugar por excelência do engajamento. Vejamos: a prosa, ao lidar com signos, torna estrutural a relação daquilo que se escreve com o mundo, acontecimento que apenas raramente e em condições históricas bastante precisas pode ser assumido pelas artes não-significantes. Vale a pena insistir: as palavras para o prosador são signos (remetem para algo fora e diferente delas); as palavras para o poeta, assim como as cores para o pintor e os sons para o músico, são coisas, são seu próprio sentido, encarnam o mundo em vez de se dirigirem a ele.

Na prosa, o escritor coloca a forma em segundo plano em relação ao conteúdo. Não se trata de recusar a beleza à prosa, mas é que a forma sempre está a serviço do conteúdo. É claro que o escritor se preocupa também com o estilo, também com a forma, mas o fato de a palavra na prosa ser signo faz com que tudo isso nos remeta ao sentido e ao mundo. Diferentemente das outras formas de arte em que nos seduzimos por elas, nos demoramos nelas, na prosa, toda a estrutura do texto nos reenvia para o Universo do sentido. Sempre podemos, é certo, ler um romance prestando atenção na forma, nos detalhes da escrita. O escritor sempre pode escrever um romance preocupado com o estilo em detrimento do conteúdo. Entretanto, nestes casos, a arte literária deixará de comunicar como prosa e a palavra se tornará objeto, não signo. O poeta está aquém das palavras, já o prosador está além delas, próximo ao objeto; o poeta está num lugar outro que o da comunicação. (SARTRE, 1948). O prosador institui no mundo a essencialidade e a necessidade, ausentes pela própria estrutura contingente da realidade.

A certa altura de “Que é a literatura?”, Sartre nos diz: “Como esperar que se provocará a indignação ou o entusiasmo político do leitor quando, precisamente, [o poeta] o retira da condição humana e o convida a considerar, com os olhos de Deus, a linguagem pelo avesso?” (SARTRE, 1948). Como já dissemos, o poeta fala de fora da linguagem, faz das palavras coisas e não estabelece propriamente uma relação comunicante com o leitor. A prosa, ao contrário, mobiliza o leitor, o encerra na condição humana. O poeta lida com a linguagem pelo avesso e o prosador se utiliza das palavras rumo ao que elas significam.

A prosa, para Sartre, é o instrumento privilegiado de uma certa atividade. Como dirá o filósofo, “a palavra é um certo momento particular da ação e não se compreende fora dela.” (SARTRE, 1948). Sendo a prosa o elemento privilegiado de uma certa atividade, e sendo o poeta um contemplador desinteressado das palavras, é ao prosador que é legítimo perguntar o motivo de sua escrita.

O prosador se utiliza de palavras, que são signos, quer dizer, que remetem ao mundo. Ele nomeia as ações e condutas retirando-lhes sua ingenuidade. E é esse mesmo ato de nomeação que opera um desvendamento e desvelamento do mundo. Em outras palavras, o escritor age sobre o mundo. Se é assim, é legítimo perguntar também qual aspecto do mundo que ele deseja ou se ocupa de desvendar (SARTRE, 1948). Ele dirige sempre uma ação interessada sobre o mundo. Desvenda o mundo e o homem para os outros homens e o que ele quer é que o homem assuma a sua inteira responsabilidade diante do que lhe é revelado. Sua função, assim, é desvendar o mundo e fazer com que ninguém se sinta inocente diante dele.

É legítimo, ainda, fazer ao escritor outra pergunta. Por que, em sua prosa, ele se ocupou deste ou daquele assunto? Por que resolveu iluminar este e não outro setor da realidade? Quer dizer, se se fala com a intenção de operar uma mudança no mundo, por que esta mudança, não tantas outras?

A exigência do engajamento, dirá Sartre, é uma decorrência da própria opção por escrever. “Cada um tem suas razões: para este, a arte é uma fuga; para aquele, um meio de conquistar. Mas se pode fugir para a solidão, para a loucura, para a morte; pode-se conquistar pelas armas”. (SARTRE, 1948). É justamente a inessencialidade da literatura, tornada pelo escritor sua necessidade, que importa a Sartre enfatizar. Se o ato de escrever é uma opção entre tantas outras, se os motivos que levam os escritores a tomar a pena e se pôr a falar não são eventos necessários da literatura, então é porque a literatura envolve uma escolha ética bem mais profunda, donde a exigência do engajamento de que fala Sartre. É a gratuidade da literatura transmutada em necessidade pelo escritor, que o enche de responsabilidade sobre toda a palavra. As palavras, dirá Sartre, são a minha espada:

“É meu hábito e, então, meu ofício. Por muito tempo eu tomei minha pena por uma espada, no presente eu conheço nossa impotência. Não importa: eu faço e farei livros; é preciso; em todo caso, sempre servem. A cultura não salva nada nem ninguém, ela também não se justifica. Mas é um produto do homem: ele nela se projeta, nela se reconhece; somente este espelho crítico lhe oferece sua imagem” (SARTRE, 2007).

Há, ainda, outro motivo essencial para notarmos essa “ressonância ética” da literatura em Sartre. Esse motivo é também aquele que impede que o engajamento possa ser considerado como elemento da doutrinação do leitor, que a literatura engajada seja sinônimo de literatura político-partidária. Esse motivo primordial é o fato de o escritor apelar para a liberdade do leitor, não para a sua passividade. Num sentido, escritor e leitor fazem par, já que a atividade de escrever exige a de ler. Um escritor não pode ser leitor de si mesmo.

Em nenhum outro lugar essa dialética é mais manifesta do que na arte de escrever. Pois o objeto literário é um estranho pião que não existe senão em movimento. Para fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto essa leitura puder durar. (SARTRE, 1948).

Cabe ao leitor, nesse esquema dialético, a instituição da objetividade da obra, além de permitir a leitura, uma vez que ler é trabalhar com expectativas, que o escritor não as pode ter para si mesmo. A leitura, quer dizer, a atividade do leitor, é o correlato dialético da escrita. Temos, assim, do lado do escritor, criação e desvendamento, ao passo que do lado do leitor, o que surge é atividade e descoberta. Assim, a leitura é uma criação dirigida. Dito de outro modo, o escritor cria a obra, mas não pode lê-la; o sentido objetivo da obra lhe escapa. O leitor, por seu turno, descobre a obra e, ao fazê-lo, dá-lhe sentido e objetividade.

Uma mulher lendo um livro. À frente dela, frutas dispostas numa toalha de mesa.
Retha Ferguson de Pexels / Canva

“Toda obra literária é um apelo” (SARTRE, 1948). O escritor, ao se manifestar pelas palavras, apela para a generosidade do leitor. Temos, assim, o engajamento de duas subjetividades, duas liberdades em prol do desvendamento dialético do mundo. O escritor é um iniciador, ele opera um desvendamento por meio da linguagem e o leitor, pela leitura. “Assim, o escritor apela à liberdade do leitor para que ela colabore na produção da sua obra” (SARTRE, 1948). O escritor apela, bem entendido, à liberdade do leitor, não à sua passividade. Não se trata de requisitar uma liberdade alienada, que poria em risco a produção de um fim absoluto.

“Raskolnikoff, eu já disse, não só seria uma sombra sem a mistura de repulsa e de amizade que eu nutro por ele e que o faz viver. Mas, por uma reversão que é própria do objeto imaginário, não são suas condutas que provocam minha indignação ou minha estima, mas minha indignação, minha estima que dão consistência e objetividade às suas condutas” (SARTRE, 1948).

É por isso que o leitor não é simplesmente conduzido pelo escritor, mas o que se tem é uma criação dirigida.

A obra literária, assim como o mundo, é detentora de uma objetividade e realidade que não dependem do leitor, já que ele não é o criador de sua realidade ontológica. No entanto o leitor empresta à obra um sentido, sem o qual ela seria rabiscos no papel. A literatura é assim, um encontro de liberdades, a ponto de instituir um paradoxo dialético: quando mais liberdade experimentamos na leitura, mais a exigimos no outro; quanto mais ele exige de nós, mais exigimos dele. É claro que o escritor conduz o leitor, mas como uma força suave que o acompanha da primeira até a última página. Se o escritor impusesse a passividade ao leitor, não haveria propriamente leitura e a relação entre duas liberdades seria extinta. “E reciprocamente, a exigência do autor é que eu eleve ao mais alto grau as minhas exigências. Assim, a minha liberdade, ao se manifestar, revela a liberdade do outro” (SARTRE, 1948). Escritor e leitor, juntos, comungam para alcançar a finalidade da literatura: recuperar este mundo, mostrá-lo como ele é, mas como se tivesse origem na liberdade humana. Por essa perspectiva, não é lícito pensar a literatura e o engajamento do escritor, de que fala Sartre, como doutrinação. Ao contrário, trata-se sempre de apelo à liberdade, do escritor e do leitor, não se podendo falar em qualquer tipo de servidão ou manipulação.

Feitos esses apontamentos iniciais e sumários, vale a pena indicarmos, ainda que sem desenvolvê-lo exaustivamente, um último ponto. O recurso a esses modos expressivos de que se vale Sartre, assim, não é mera opção ou oriunda de algum talento de escritor próprio ao filósofo, mas uma exigência, dados, de um lado, o projeto de compreensão e elucidação integral da realidade humana e, de outro lado, a estrutura e a condição dramáticas dessa mesma realidade que apenas se efetiva na história, no mundo entre os homens. Essa peculiaridade da presença da realidade humana no mundo impõe um horizonte ético de compromisso do filósofo e que é também inescapável se levarmos em consideração como Sartre compreende a palavra filosófica ou literária. Do filósofo? Não apenas do escritor? Sem querer falar como Borges, para o qual a filosofia parece figurar como subgênero da literatura, pensamos que, em Sartre, literatura e filosofia parecem caminhar juntas na concepção de engajamento da prosa e da pessoa:

“O absoluto é Descartes, o homem que nos escapa porque está morto, que viveu em sua época, que a pensou no dia a dia com os meios que tinha, que formou sua doutrina a partir de certo estágio das ciências, que conheceu Gassendi, Caterus e Mersenne, que em sua infância amou uma moça suspeita, que guerreou, que engravidou uma criada, que atacou não apenas o princípio de autoridade em geral, mas precisamente a autoridade de Aristóteles, e que se postou em sua época, desarmado mas não vencido, como um marco; o que é relativo é o cartesianismo, essa filosofia portátil, que passeia de século em século e na qual cada um encontra o que quer. Não é correndo atrás da imortalidade que nos tornaremos imortais: não seremos absolutos por ter refletido em nossas obras alguns princípios desencarnados, suficientemente vazios e nulos para passar de um século a outro, mas porque combatemos com paixão em nossa época, porque teremos gostado dela apaixonadamente e porque teremos que aceitar perecer inteiros com ela” (SARTRE, 1999).

Mas não apenas isso, o que já seria um oceano, diga-se de passagem. Essa alusão que nos faz olhar para uma espécie de Descartes na completude de uma vida e de uma obra indica justamente a apreensão sempre parcial proporcionada pelos recursos estritamente filosóficos e conceituais, se se tem como objeto próprio a pessoa humana. Daí a ideia de uma obra que não pode ser explicada pela vida ou de uma vida que não se reduz à obra, mas que se exigem mutuamente. Donde a incursão na literatura, cujos recursos, embora também parciais se considerados isoladamente, comungam, em Sartre, para a compreensão integral da realidade humana.

As modalidades expressivas de que Sartre lançou mão para a elaboração de seu pensamento encontram sua raiz na tentativa de apreensão totalizante da ordem do humano, da singularidade concreta que é a pessoa humana — e isso se dá porque as ferramentas analíticas e abstratas enraizadas na filosofia tradicional exigem, no entender de Sartre, uma rearticulação discursiva cuja potência aponte para a descrição compreensiva do humano, o que acaba por indicar a própria superação daquela perspectiva predominantemente analítica. Dito de outro modo, o ser cuja realidade se configura pela estrutura paradoxal de ser à maneira de não ser e de não ser à maneira de ser exige mais do que o conceito para sua progressiva e totalizante apreensão. Daí também o valor das ferramentas compreensivas “vizinhança comunicante”, para tentar apreender os termos da relação entre filosofia e literatura em Sartre; e “ressonância ética”, porque a compreensão que Sartre tem do ser humano conduz a uma situação no mundo inescapavelmente circunscrita pelo alcance e valor éticos de suas ações. Essas considerações, assim, talvez nos ajudem na elucidação desse desconcertante intercâmbio entre os gêneros expressivos e, finalmente, na quase proposta de um gênero misto, materializado, ainda que de forma inacabada, na monumental biografia sobre Flaubert.

Emile Bréhier, em suas considerações à conferência de Merleau-Ponty, de 1946, intitulada “O primado da percepção e suas consequências filosóficas”, assim observava: “Vejo suas ideias se expressando pelo romance e pela pintura mais do que pela filosofia. Sua filosofia termina no romance” (MERLEAU-PONTY, 2015). Guardadas as devidas proporções, e dadas as familiaridades entre as filosofias de Sartre e Merleau-Ponty, o comentário de Bréhier é útil para se aquilatar a envergadura do empreendimento de Sartre e que se expressou pela recorrência a distintos gêneros discursivos, como tentamos indicar neste artigo. Sabemos que Sartre buscou explorar a biografia em diferentes momentos de sua experiência intelectual e aquela dedicada a Flaubert, volumosa e inacabada, parece coroar uma tentativa sempre almejada de compreensão da realidade humana, marcada pela suspeita de que o discurso filosófico tradicional não seria capaz de efetivar em todas as suas peculiaridades. Donde a ideia de “quase filosofia” e “quase literatura” que parece desconcertar o leitor de primeira hora.

As noções de “vizinhança comunicante” e “ressonância ética”, conforme sugeridas por Franklin Leopoldo e Silva, assim, procuram indicar a “passagem interna” entre filosofia e literatura em Sartre no mesmo passo em que aponta as consequências éticas do pensamento de Sartre e que, muito provavelmente, não poderia ter sido desenvolvido de forma separada, precisando perpassar toda a sua obra. Empreendimento por vezes incompreendido por aqueles que, como Bréhier, resguardam território quase imaculado para a filosofia.

Ao encontrar a fenomenologia de Husserl, Sartre já sabia da necessidade de reelaborar o discurso filosófico e das implicações éticas de sua abordagem. Trata-se de uma exigência que decorre do esforço compreensivo de uma realidade, notadamente a realidade humana, que se mostra irredutível ao princípio da identidade, justamente porque se recusa a compreender a pessoa humana como um ser que é o que é. Tal empreendimento está no coração da filosofia de Sartre e exigiu a rearticulação das modalidades expressivas. Não podemos indicar, contudo, ainda, todas as características e o alcance da questão em Sartre. Parece certo o papel decisivo da apropriação sartriana da fenomenologia, como abertura para novas possibilidades de realizar a empresa filosófica, o que fora notado também por Merleau-Ponty: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de filosofia” (MERLEAU-PONTY, 2015). E se essa perspectiva de uma dupla abordagem parece contemplar os primeiros textos de Sartre, o desenrolar de sua experiência intelectual aponta para algo ainda mais radical: a compreensão ética do humano de forma que a via estanque da filosofia e da literatura puras talvez não possam abarcar. Donde a relevância das ferramentas interpretativas que tentamos mobilizar neste trabalho.

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Sobre o autor

Nilo Deyson Monteiro Pessanha

Sou filósofo, escritor, poeta, colunista e palestrante.
Meus trabalhos culturais estão publicados em diversas plataformas. Tenho obras e livros publicados.

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Sou uma incógnita que deve ser lida com atenção e talvez somente outras gerações decifrem meu espírito artístico. Sou muitos em mim e todos se assentam à mesa comigo. Posso não ser uma janela aberta para o mundo, mas certamente sou um pequeno telescópio sobre o oceano do social.

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