Comportamento

A história do mimimi

Garoto com expressão de pensativo em fundo verde
Foto de mklrnt no 123RF
Escrito por Alex Gabriel

Dia desses, peregrinando pelas redes sociais, vi um post bem singelo que trazia um pequeno diálogo entre mãe e filho: “Mãe, o que é mi-mi-mi?” Ao que a mãe, sábia e objetivamente, responde: “Mi-mi-mi é a dor que não dói na gente”. Vi-me pensativo diante desse post, ficando a indagação da criança a reverberar na minha mente. “Afinal, o que é mi-mi-mi?”, eu me perguntava. E tal foi a minha surpresa, quando me veio que o tal “mi-mi-mi” – não a palavra em si, mas o conceito – está há muito presente em nossa história. E eu gostaria de lhe pedir licença para contar um pouco dessa história.

Bom, quando os navegadores portugueses chegaram a Pindorama, falava-se por aqui uma média de 1.300 línguas indígenas distintas.

Aqui eu preciso fazer um parêntese só para te contar que Pindorama – termo que pode ser traduzido como “terra das palmeiras” – era o nome pelo qual os habitantes da região “descoberta” por Cabral (1467-1520) e sua frota a designavam. No imaginário dos povos tupis-guaranis, Pindorama era uma terra livre de todo mal, mito supostamente criado quando da migração desses povos indígenas para o litoral brasileiro.

Rosto de índio com cocar visto de perto
Foto de Ichio no Unsplash

Então, a gente pode dizer que Pindorama foi o nome pelo qual os nativos batizaram a região que hoje conhecemos como Brasil. A propósito, objetivando exaltar a cultura indígena como parte de nossa identidade, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) aludiu à denominação tupi em seu Manifesto Antropófago (1928), que defendia uma arte tipicamente brasileira, livre das influências europeias.

Bom, então, voltando: quando – acidentalmente, como defendido por alguns – o Brasil foi “descoberto”, falava-se por aqui cerca de 1.300 línguas. E não é por menos, já que algo como 8 milhões de nativos habitavam estas terras.

Os portugueses, então, fizeram algo muito importante, que foi o agrupamento dos povos indígenas com base nas similaridades entre suas línguas, destacando-se o tupi como um dos principais troncos na classificação linguística. Portanto, tupi, no sentido genérico do termo, refere-se aos nativos que habitavam a costa brasileira naquele tempo e que falavam a língua tupi antiga.

Mulheres conversando em mesa de trabalho
Foto de Tirachard Kumtanom no Pexels

Fique você sabendo que o verbo “falar” equivale a “nheem” (ñe’eng) na língua tupi. Parece que os portugueses não tinham lá muita paciência com o falatório dos índios tupis, de modo que eles fizeram da tripla repetição do verbo “nheem” – ou seja, “nhe-nhe-nhem” – uma referência depreciativa ao falar daquele povo.

Assim, “nhe-nhe-nhem” se tornou uma onomatopeia utilizada como referência a um falatório incessante, ou mesmo ao ato de resmungar, reclamar, etc. Lá pelos anos 1940, porém, a gente importou o “blablabla” do francês, derivado do verbo “blaguer”, que em português é gracejar, zoar, fazer piada, etc.

O curioso é que existe um poema de Cecília Meireles (1901-1964) intitulado “A língua do nhem” (“Ou isto ou aquilo”, Rio de Janeiro, 6. ed., Nova Fronteira, 2002, p. 63-64), que nos apresenta uma doce velhinha que, triste por não ter com quem conversar, vivia resmungando sozinha pela casa: nhe-nhe-nhe-nhe-nhe-nhem…

Havia uma velhinha

que andava aborrecida

pois dava a sua vida

para falar com alguém.

E estava sempre em casa

a boa da velhinha

resmungando sozinha:

nhe-nhe-nhe-nhe-nhe-nhem…

O gato que dormia

no canto da cozinha

escutando a velhinha

principiou também

a miar nessa língua

e se ela resmungava,

Gato dentro de cesto prestando atenção
Foto de Tirachard Kumtanom no Pexels

o gatinho a acompanhava:

nhe-nhe-nhe-nhe-nhe-nhem…

Depois veio o cachorro

da casa da vizinha,

pato, cabra e galinha,

de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam

a falar noite e dia

naquela melodia

nhe-nhe-nhe-nhe-nhe-nhem…

De modo que a velhinha

que muito padecia

por não ter companhia

nem falar com ninguém,

ficou toda contente,

pois mal a boca abria

tudo lhe respondia:

nhe-nhe-nhe-nhe-nhe-nhem…

Beleza, mas e o “mi-mi-mi” nessa história toda? Bom, essa gíria, que parece um choro, surgiu em “Fudêncio e seus amigos”, série de animação politicamente incorreta exibida pela MTV entre 2005 e 2011. Na série, o protagonista – semelhante à velhinha do poema de Cecília Meireles – falava apenas a língua do “mi-mi-mi”, irritando outro personagem.

Capa de desenho Fudêncio e seus amigos
Reprodução MTV – Desenho: Feudêncio e seus amigos

Utilizada desde o início como forma de diminuir ou mesmo zombar da reclamação de outrem, a expressão “mi-mi-mi” era muito comum entre os torcedores no contexto do futebol. Quando o time da pessoa fracassava, ela ficava de “mi-mi-mi”. Depois, no entanto, essa onomatopeia se tornou quase que um jargão político, utilizada, sobretudo, como forma de menosprezar manifestações em prol das minorias.

É fato que o “nhe-nhe-nhem”, o “blá-blá-blá” e o “mi-mi-mi” diferem entre si no sentido de que um zomba do falar de um povo, outro se relaciona ao ato de “falar abobrinha” (a origem desta eu te conto noutra hora) e outro reduz ao vitimismo a reivindicação de determinados grupos sociais. As três palavras, no entanto, têm em comum o fato de expressarem pejorativamente um posicionamento contrário a algo ou a alguém.

Sendo a nossa linguagem um incontestável reflexo social, é natural (mas não louvável) que em todas as épocas não nos haja faltado nem mesmo onomatopeias a marcarem o lugar do opressor e do oprimido, ou, para mais além disso, a evidenciarem a ausência de empatia, qualidade indispensável a qualquer sociedade que se pretenda realmente civilizada. É lamentável que, entre o “nhe-nhe-nhem” e o “mi-mi-mi”, nunca hajamos falhado em encontrar uma maneira de escarnecer do grito daqueles que não têm voz.

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E o que é empatia? Definições não faltam, mas eu vou te dar uma por meio da poesia: empatia é a virtude que levou o gato, o cachorro e vários outros animais a aderirem à “língua do nhem”, no poema da Cecília, curando na boa velhinha o sentimento de solidão em lugar de repreendê-la por uma solidão que não era deles.

O nome disso é fraternidade, que é o alicerce de uma sociedade “livre de todo o mal”, como aquela terra mítica idealizada pelos nossos ancestrais indígenas, talvez já prevendo o que séculos mais tarde viria a ser defendido por algumas vertentes, segundo as quais é o Brasil o ponto de partida para a regeneração da humanidade.

Fraternidade… pois onde existe fraternidade não há de se falar em “mi-mi-mi”.

Sobre o autor

Alex Gabriel

Mineiro de Belo Horizonte, Alex Gabriel é graduado em Letras e especialista em Revisão de Textos pela PUC Minas. É poeta, pai adotivo das vira-latas Diva e Nathalie, tem sempre um bom livro a tiracolo, acredita na Educação e vive cheio de fé na humanidade.

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