Está quente! Muito quente! Meus óculos haviam caído. Abri os olhos o mais que pude, mesmo que de nada adiantasse. Sabe, era bem difícil ver qualquer coisa naquela fumaça toda.
Forcei os olhos abertos. Forcei a visão.
Terror!
Sim, o planeta todo pegava fogo. Agora sim, eu pude ver. E como não vi antes? Como ninguém vê? Está tudo queimando. O cheiro, a fumaça nas narinas. Tudo em chamas. Como?
Melhor correr. Sair daqui. Olho o ar opaco tentando forçar a passagem de meus olhos, um vento sopra por sobre minha cabeça, abrindo uma brecha na fumaça.
Corro.
Correndo.
Faz tempo que não corro. Minhas pernas reclamam, a panturrilha dói, a coxa arde.
Sem ar. Sem ar.
Paro. O que há? Ao redor, tudo em chamas. Pessoas? Elas vão e vêm sem notar.
– Fogo! – grito eu – Fogo!
Nada. Ninguém responde.
Uma mulher graúda de vestido vermelho me olha torto e segue sei lá para onde, como se eu não estivesse ali, gritando.
Fogo! Sigo gritando. Gritando. Minha cabeça arde.
Ninguém me ouve, ninguém liga. Mas grito mesmo assim. Não importa, quando o medo explode o pânico te tira a razão das coisas, você só quer lançar o pavor para fora.
A fumaça cobre minha cabeça. A tosse abafa meus gritos. Eu quero parar, descansar.
Soluçando. Engasgado.
Ajuda! Alguém! Ajuda!
Ajuda!
Meu grito agora é sussurro. A voz treme no soluço, e o pranto vem.
Choro.
As lágrimas correm. Encolhido, choro. Tentando me espremer em mim mesmo, me esconder bem fundo no meu peito. Algum lugar seguro.
Me deito como feto, querendo voltar para um lugar seguro com minha mãe.
Cadê meus óculos? Penso antes de ceder à exaustão e desmaiar no chão.
As chamas não me tocam. Mas o fogo arde.
Respiração carregada. As pálpebras pesadas. Cadê meus óculos? Acordando de um sonho? Visitei o inferno essa noite? A cabeça pulsa.
Alguém? Ajuda?
Fogo.
O coração acelera, e lembro. Não era sonho.
– Ajuda! – grito de novo.
Ninguém.
A garganta já não quer mais gritar e o corpo não quer mais correr. De olhos fechados, não quero ver. A mente grita, pressão. A cabeça chia como uma panela de pressão.
Xiiiiiiiiiiiiii.
Xiiiii.
Xii.
Vou enlouquecer.
Xiiiiiiii.
Xiiii.
De repente, silêncio.
A mente rompe. E tudo fica mudo.
Respiro fundo. O corpo se acalma. De leve, contido, abro os olhos.
Fogo.
Fecho os olhos de novo. A respiração acelera. A cabeça esquenta.
Respira. Respira.
De novo, abro os olhos.
Fogo.
Respiro… e observo.
A fumaça se dissipou. Posso ver tudo com maior clareza. Tudo queima, e ninguém vê.
Tem fogo naquela mulher. Naquele homem também. Eles não notam.
Eu me levanto, minha cabeça está quente. Quero ver.
De pé, vejo toda a gente indo e vindo, todas em chamas. Mas elas não gritam, não correm. Chego perto de uma mulher com fogo nos ombros. Olho-a de mais perto. Sua carne está queimando, mas ela não reclama.
Ela me vê olhando para ela. A senhora ajeita seus óculos e me pergunta:
– Posso ajudar?
Com os olhos pregados nas suas feridas em chamas, digo:
– A senhora está bem?
– Estou! Por que pergunta? – diz ela, olhando em seu ombro, para onde meus olhos se encontram fixados.
A mulher não me esperou responder e, dando de ombros, se foi.
E o fogo continuava. Queimando e queimando.
Não pude entender. Todos em chamas. Todos.
O mundo em chamas. O que há? O que houve?
Tento me lembrar.
Cadê meus óculos?
Confuso. A cabeça ardente volta a doer.
O que há?
Quero ir para casa. Reconheço a rua, que agora queima no fogo alto, sigo como posso evitando as chamas. Mas é quente, muito quente. Como essa gente toda não vê?
Algum tempo depois, chego a minha casa.
Meu Deus, em chamas!
Corro em desespero. Ela pega fogo. O telhado todo em chamas.
– Ajuda! – grito.
Vou ao vizinho e me desespero: sua casa também está em chamas. Ouvindo meu grito, o homem sai de sua casa, com a cabeça em chamas. Ele me olha assustado. “O que há?” pode ser lido em seus olhos, por detrás das lentes opacas de seus óculos estranhos.
– Minha casa está em chamas, sua casa está em chamas, sua cabeça está em chamas – grito novamente, em pânico.
O homem, assustado por um instante, olha para minha casa e depois para sua. Faz uma careta e me diz:
– Do que está falando?
– Fogo! Fogo! – grito, correndo para o outro lado da rua.
De novo corro!
Corro sem parar!
Sem parar!
A tosse de repente me rouba o ar. Paro. Estou no meio da fumaça.
Sufocante. Estou sufocando.
Tusso e caio sobre meus joelhos.
A consciência se esvai, e vou ao chão.
Estou indo. Estou indo.
Alguém! Ajuda!
…
Meus olhos se abrem devagar. A luz entra ferindo minha retina. Com esforço, mantenho-os abertos. Com a visão ainda embaçada, vislumbro a lâmpada no teto.
Lâmpada? Onde estou?
Assustado, tento me levantar. Me percebo em uma cama simples. Minha cabeça arde. Onde estou?
Me vejo em um quarto fechado. O cheiro das paredes de madeira enche minhas narinas. O quarto está vazio, apenas comigo na cama.
– Onde estou? – penso alto.
– Está bem? – assusta-me de repente a voz vindo da porta a minha frente.
Assustado, viro o rosto na direção do som, para ver um velho parado na porta a me olhar com um semblante leve e jovial.
– Como está, jovem? – volta a perguntar o senhor.
– É, melhor! – esforço-me para responder, afagando a cabeça quente.
– Cuidado para não pôr fogo no quarto, com essa cabeçona – diz o homem com um sorriso de menino na cara larga.
– Fogo? Como assim? – pergunto, voltando a me agitar.
– Mesmo sem os óculos demora para perceber, não é?
– Sem os óculos? – eu me esforçava para entender do que o velho falava.
– Do que está falando, senhor?
– Se acalme. Esquentar a cabeça só vai colocar mais fogo em tudo. Já foi difícil conter as chamas para te trazer aqui – explicou o velho, deixando-me apenas mais confuso.
A cabeça latejante me impediu de continuar com as perguntas. Recostando-me na cama, pisquei pesado e depois fechei os olhos.
– Descanse mais um pouco, deixe o fogo abrandar, as coisas serão explicadas no devido momento.
Sem poder escolher o que queria, cedi ao conselho do velho e me deitei novamente, entregando-me à exaustão que ainda me assolava.
Deixando tudo de lado, entreguei-me ao sono e ao silêncio que vinha com ele. Antes de fechar, vi o velho a sorrir – sua cabeça brilhava, mas sem chamas. Pisquei pesado e observei uma vez mais. Em seu peito, estranho, uma chama, uma chama leve e azul. Ele me sorriu uma vez mais, e eu me acalmei de todo.
Frescor.
Passou! Tudo passou!
Depois de cento e oito dias, tudo passou. Bem, o fogo continuava, por todo lado. Todos ainda estavam em chamas.
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Porém minha cabeça agora não queimava. Não mais como antes, ainda havia brasa, mas as chamas altas e abrasivas se extinguiram havia poucos dias. Ainda devia andar por aí com todo o cuidado e vigilância, pois as chamas se espalhavam por onde quer que fosse, e eu ainda podia ser queimado.
Nunca mais achei meus óculos, e isso me salvou. Por suas lentes, eu não via o fogo a queimar. Suas lentes opacas mascaravam o mundo, apagando o que ninguém queria ver. Mas o fogo queima mesmo assim, vendo ou não.
Sem os óculos, me desesperei, corri, gritei. E aqui estou agora.
As chamas que queimam o mundo não me queimam mais. As chamas levaram minha antiga vida, e agora é hora de acender uma nova chama, desta vez dentro.
Uma chama diferente que não queima, mas que ilumina, que aquece e se expande além da visão.
Me despeço do velho e lhe agradeço por cuidar de mim e me mostrar como apagar as chamas do mundo a me consumir. Me viro para as montanhas, aonde o fogo não chegou e inicio meu novo caminho.
E para você, desejo que seus óculos caiam logo e que perceba o mundo em chamas a te consumir.