Comportamento Convivendo

Consciência de negritude

Menina adolescente sorrindo em aula de pintura na escola.
123rf/Cathy Yeulet

Nasci em 1987, na zona de norte de São Paulo, segunda filha de um casal pobre que batalhou muito para conquistar seus objetivos.

Meus pais tinham o desejo de ter dois filhos, uma menina e um menino. Minha irmã nasceu em 1985 e na próxima tentativa “deveriam” ter gerado um menino, mas não foi isso que aconteceu. Após a descoberta de uma gravidez de outra menina novamente, meus pais decidiram não fazer mais uma “tentativa”. Naquela época somente meu pai trabalhava, morávamos de aluguel e, pelo fato de não terem condições de pagar alguém para cuidar das filhas, minha mãe dedicou boa parte de sua vida a cuidar de nós.

Embora tivéssemos uma infância simples, éramos felizes com as possibilidades que a vida nos trazia.

Duas meninas sentadas em um banco de madeira, usando vestidos amarelos. Uma maior que a outra, elas estão com os rostos virados para se olharem.
Pexels/nappy

Em minha adolescência, questionava a minha mãe a respeito do porquê havia tantas fotos da minha irmã quando era criança, mas quase não havia fotos minhas. Nossas prioridades eram outras… Ao passo que muitas famílias tinham condições de comprar uma câmera fotográfica e filmes para tirar e revelar as fotos, não tínhamos condições financeiras para isso, então o início da minha infância ficou gravado apenas na memória dos meus pais.

Com o passar dos anos, meus pais optaram por se mudar de casa, pois pagar aluguel estava ficando pesado demais, então escolheram construir a casa em que moramos, no terreno da minha avó, e moramos aqui até hoje.

Meus pais sempre tiveram bom relacionamento com os vizinhos e até hoje são bem conhecidos na vila. Na nossa infância fizemos algumas amizades também.

Lembro-me de que não tinha amigas negras na rua e na escola, muito embora morássemos em um local em que a proporção de negros era maior… Por que era assim? De fato não sei explicar, talvez porque eram as pessoas mais próximas a nós naquele momento.

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Tivemos uma infância bem feliz, íamos a escola, chegávamos em casa e brincávamos na rua. Naquela época não existia tecnologia (e confesso que era muito bom).

Minha mãe era muito preocupada com a nossa postura, aliás até hoje. Não podíamos gritar na rua, segundo ela, porque isso não era coisa de menina; era feio, ainda mais sendo negra; quem gritava era tida como barraqueira, escandalosa e era feio. Recordo-me que minhas amigas tinham primos mais velhos, eram adolescentes, e irmãos de vizinhos que também eram mais velhos e ficavam na casa da tia delas conversando enquanto brincávamos, mas para minha mãe não podíamos falar com eles, porque eram mais velhos, tinham malícia e podíamos ficar “faladas” na rua. Minha mãe sempre disse: “Não confie em homem. Nunca fique sozinha com um vizinho, até mesmo alguém da família. A maldade existe desde que o ser humano existe”. De fato concordo com a minha mãe. Naquela época não se falava de pedofilia e, pelo fato de sermos negras, a probabilidade de dizerem que nós estávamos erradas se algo acontecesse era bem grande.

Mesmo vivendo como criança, sem grandes responsabilidades, fomos criadas para ser responsáveis, principalmente por saber cuidar de nós mesmas e nos defender.

Como explicar a uma criança que a sua cor causa medo, desejo e até mesmo nojo em outras pessoas? Mas quando era criança e adolescente, eu não questionava minha mãe sobre os tantos “não pode”, apenas respeitava e fazia o que ela pedia.

Obviamente que eu não tinha maturidade para entender o que era certo ou errado, se é que posso dizer assim. Mas ao longo dos anos comecei a me questionar sobre as diferenças das pessoas. Certa vez, na escola, na aula de educação artística, estávamos pintando a Mônica (da Turma da Mônica, personagem de Mauricio de Sousa) e uma colega de classe me pediu um lápis cor-da-pele. Foi quando a questionei: “Cor da sua pele, né?”. Ela era branca como a personagem. A partir disso, passei a me questionar sobre alguns fatos. Dentre vários episódios, esse foi um dos que me marcaram.

Crianças em escola, sentadas lado a lado, a maioria brancos, com uma menina negra no centro.
123rf/Wavebreak Media Ltd

Mas ainda me questiono se deveríamos ter a consciência de sermos negros desde criança. Talvez no que tange à nossa ancestralidade, sim, pelo fato de que conheceríamos nossa história desde cedo, saberíamos de onde viemos e pensaríamos para onde e como vamos. E usaríamos isso a nosso favor, buscando o nosso lugar e o nosso espaço, como qualquer outra pessoa na sociedade, não vivendo em função de aceitar o que é imposto a nós. Infelizmente para algumas pessoas ainda teremos que ensinar que não existe lápis cor-da-pele. Se vivemos em país miscigenado, qual é o lápis cor-de-pele correto?

Sobre o autor

Beatriz de Andrade Silva

Psicóloga Clínica, orientada pela psicanálise freudiana, Mestranda em Psicologia Social (PUC-SP), especialista em diversidade nas organizações (PUC-SP), pós-graduada em direitos humanos, responsabilidade social e cidadania global (PUC-RS), pós-graduada em psicologia e desenvolvimento infantil, mentora de carreira (FGV) e pesquisadora das relações étnico-raciais. Atuei por oito anos no mercado financeiro, na área de gestão de pessoas, com foco em talent acquisition, treinamento & desenvolvimento. Na área social, sou voluntária em um coletivo que busca colocar a diversidade e inclusão em pauta e ação.
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