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Eu não nasci de óculos

Um gato laranja que usa um óculos de grau está observando um livro aberto que está na sua frente. Ao lado, há uma xícara com chá.
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Escrito por Nina Veiga

Quem disse que envelhecer precisa ser sinônimo de conformismo? Entre lembranças, ironias e um toque de rebeldia, o artigo reflete sobre o tempo e os inevitáveis óculos da vida. Afinal, será que a alma também envelhece? Descubra no artigo completo!

O refrão daquela música dos Paralamas do Sucesso não me sai da cabeça: “Eu não nasci de óculos/Eu não era assim, não”. Estou me saindo uma idosa revoltada. Do tipo que se rebela com qualquer reumatismozinho. Será que toda adolescente rebelde, porque fui uma adolescente rebelde, dá uma idosa rebelde?

Quando não consegui mais ler, enquanto lavava a cabeça, aquelas minúsculas letras do shampoo, coloquei logo a culpa na água, falei que era porque tinha entrado sabão no olho. Agora, que não leio mais nada sem óculos, não estou mais conseguindo escapar da triste e comum sina dos quarentões e cinquentões: me tornar uma dependente de óculos.

Quando Herbert, Bi e Barone transformaram “Óculos” em hit, eu me vangloriava de ter olhos de lince. Agora, quando vejo os três em cima do palco, calvos, barrigudos e de óculos, sou tomada por uma nostalgia, uma saudade de sei bem o quê.

Me vejo declamando outro refrão: “Bons tempos… aqueles…” Em que eu lia bula de remédio sob a luz amarelada do abajur. Bons tempos em que via as horas no reloginho de pulso, ainda meio dormindo, no lusco-fusco da madrugada.

Uma mulher tira seu óculos de grau e o segura na mão, como se estivesse descansando a vista.
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Bons tempos… Quando dava para acertar de primeira uma linha grossa numa agulha fina. Bons tempos em que eu varava as noites lendo com lanterna debaixo do cobertor. Bons tempos aqueles em que longe e perto eram inofensivos advérbios medidores de distância e não receita de ótica.

Mas o que minha rabugice não se conforma mesmo é com o tirar e pôr de óculos. Muito menos com aquilo dependurado na ponta do nariz. Cordinha então, nem pensar. Dizem que existe uma cirurgia para vista cansada. Me recuso até a pronunciar essa expressão “vista cansada”. Cansada estou ficando eu de ver, ou melhor, de não ver, minhas capacidades diminuindo a cada dia mais.

Alguns defendem a cirurgia, outros condenam. Vou eu me meter nessa briga? Se com olhos fracos já está difícil assumir a idade, imaginem cega? Sinto muito, por enquanto nada deste tira-põe de óculos. Vou esperar que a vista de longe também se canse, aí sim. Afinal, eu não nasci de óculos.

Servicinho:

“Se você tem mais de 40 anos e sente dificuldade para ler de perto, fique atento: seus olhos cansaram de trabalhar e podem estar acusando a existência da presbiopia, um problema que surge com a idade”.

A frase acima é de um anúncio para cirurgia de “vista cansada”. Não suporto esta expressão, assim como não aguento isso de tirar e pôr os óculos a cada piscada.

Agora que a idade me deixou presbíope, me tornei uma idosa rebelde e vou lutar até o fim contra esses penduricalhos de nariz. Não consigo me conformar com uma coisa sem graça dessas.

Sobre o autor

Nina Veiga

A artemanualista e ativista delicada Nina Veiga é doutora em educação, escritora, conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa e suas artes, na perspectiva da antroposofia da imanência. É idealizadora e coordenadora do coletivo Ativismo Delicado e das pós-graduações: Artes-Manuais para Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar. Desenvolve trabalhos de formação de artífices e escritores. Suas oficinas associam o saber teórico-conceitual às artes-manuais como modo de existir e à escrita como produção de si e do mundo.

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