Há algo desconfortável que circula, de forma sutil ou escancarada, pelos bastidores do mundo terapêutico. Algo que quase ninguém ousa dizer em voz alta, talvez por receio, talvez por conveniência, talvez por cansaço. Mas que precisa ser dito. Nem todo mundo que se coloca como terapeuta deveria estar atendendo.
Dizer isso não é elitismo espiritual, não é julgamento moral, muito menos uma tentativa de impor padrões perfeccionistas. É uma constatação que surge a partir da observação constante e do contato com histórias reais, e, infelizmente, cada vez mais comuns, de pessoas que foram feridas dentro de espaços que deveriam ser de cuidado.
O exercício da escuta, do toque, da orientação, do acolhimento exige mais do que cursos, certificações e redes sociais bem alinhadas. Exige discernimento, ética, integridade. E integridade não é o que se diz em público. É o que se cultiva em silêncio, longe das câmeras, nos momentos em que ninguém está aplaudindo ou curtindo.
O que temos visto, com frequência crescente, são profissionais que constroem personas impecáveis nas redes, mas que, nos bastidores, cultivam condutas incompatíveis com o cuidado. Terapeutas que compartilham frases sobre amor e compaixão enquanto perpetuam fofocas, expõem clientes veladamente, trocam mensagens de conteúdo impróprio, ou, pior, utilizam seu ofício para alimentar jogos de poder e manipulação emocional.
Existe algo profundamente errado quando um terapeuta, por trás da postura serena e dos discursos edificantes, age com desrespeito à vulnerabilidade do outro. E aqui não estamos falando apenas de violência física ou de escândalos extremos. Estamos falando também das microviolências: as pequenas faltas de ética, os abusos simbólicos, as negligências disfarçadas de liberdade terapêutica.
Pessoas em processo de escuta e transformação não podem ser expostas, usadas como válvula de escape ou objeto de prazer oculto. E, sim, isso acontece. Há casos em que terapeutas tocam em áreas íntimas sob o pretexto de cura energética, compartilham imagens ou comentários sobre pacientes em grupos privados, mantêm relações afetivas com clientes durante os atendimentos e depois justificam como “conexões espirituais”.
Nada disso é espiritualidade. Nada disso é consciência. É apenas ego, travestido de missão.
Há ainda os que não se atualizam, não se reciclam, não buscam supervisão, não fazem terapia. Estão estagnados há anos no mesmo discurso, muitas vezes com conteúdos que já foram revistos por áreas da saúde, da psicologia e da própria espiritualidade. Mantêm práticas questionáveis, orientam de forma ultrapassada, reproduzem crenças que reforçam culpa, medo, dependência.
O que mais impressiona é que muitos desses profissionais são considerados “bem-sucedidos” no meio. Têm agenda cheia, número alto de seguidores, depoimentos visíveis. Mas o que não se vê é a quantidade de clientes que saem confusos, quebrados, dependentes. Ou o número de colegas que já tentaram conversar sobre esses comportamentos, mas foram ignorados, desqualificados ou silenciados.
Existe uma responsabilidade silenciosa que vem com o título de terapeuta. E essa responsabilidade não está no marketing, nem na vitrine, mas no que se sustenta fora da cena pública. É o que você faz quando recebe uma história de dor. É como você lida com seu próprio ego quando alguém te coloca num pedestal. É como você encara seus próprios conflitos, vícios, contradições.
Todos somos humanos, e é evidente que não existe terapeuta “pronto”. O caminho da evolução é constante, inacabado, cheio de buracos. Mas existe uma diferença gritante entre estar em processo e estar negando o próprio processo. Entre ser imperfeito com consciência e ser inconsequente com orgulho.
Um terapeuta que não se cuida, que não se observa, que não se compromete com a própria transformação, corre o risco de virar apenas um personagem. E quando o personagem domina o ofício, o campo de cuidado se torna um palco. Perigoso. Sedutor. Disfarçado.
A integralidade no trabalho terapêutico começa pelo compromisso com a verdade. E isso não significa acertar sempre. Significa ser capaz de rever escolhas, escutar críticas, pedir ajuda, parar quando for preciso. Profissionais íntegros se permitem desconstruir, se abrem à escuta de seus pares, frequentam rodas de supervisão, estudam, se aprimoram. Sabem que a responsabilidade que assumiram ao abrir espaço para cuidar de outro exige, no mínimo, o compromisso de também olhar para dentro.
Quem perpetua condutas antiéticas, quem atua em estado de dissonância profunda entre o que ensina e o que pratica, precisa ser convidado a parar. Não como castigo, mas como um gesto de maturidade. Parar para se rever. Parar para refazer caminhos. Parar para não ferir mais ninguém.
É urgente que se crie uma cultura de ética mais clara no meio terapêutico. Que se normalize o pedido de supervisão, o acompanhamento pessoal, o limite de atuação. Que terapeutas conversem entre si sobre o que estão vendo e sentindo. Que o silêncio em nome da harmonia não se torne cumplicidade.
Cuidar é uma arte delicada. Envolve mais do que técnicas e boa intenção. Envolve coragem de se olhar, compromisso com a verdade e profundo respeito por quem confia em você.
Se você é terapeuta e sente que está se perdendo de si, pare. Reorganize. Retorne. É mais digno fazer uma pausa do que seguir alimentando um papel que não tem mais raiz.
Se você conhece alguém que fere esse lugar de cuidado, não ignore. Não se cale. Há maneiras respeitosas e seguras de sinalizar, de sugerir revisão, de manter o campo mais saudável para todos.
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E se você é cliente, lembre-se: você tem o direito de se sentir seguro. Nenhuma técnica, nenhum título, nenhuma autoridade justifica um comportamento que te faz se sentir mal, confuso ou desconfortável. Cuidado de verdade não confunde. Não manipula. Não expõe. Cuidado de verdade sustenta.
A terapia não é uma zona de poder. É uma travessia de humildade.
E que assim permaneça. Para o bem de todos que escolhem, de forma honesta, fazer disso uma missão verdadeira.