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Velhice: o Eu invisível

Imagem de uma mulher com metade do seu rosto envelhecido e a outra metade jovem
A's Images / Canva

Quando Buda era ainda o príncipe Sidarta, encerrado por seu pai num magnífico palácio, dele escapuliu várias vezes para passear de carruagem nas redondezas. Na primeira saída, encontrou um homem enfermo, desdentado, todo enrugado, encanecido, curvado, apoiado numa bengala, titubeante e trêmulo.

Espantou-se, e o cocheiro lhe explicou o que era um velho: “Que tristeza”, exclamou o príncipe “que os seres fracos e ignorantes, embriagados pelo orgulho próprio da juventude, não vejam a velhice! Voltemos rápido para casa. De que servem os jogos e as alegrias, se eu sou a morada da futura velhice?” (extrato da Introdução do livro “A Velhice”, de autoria de Simone de Beauvoir).

Você já se deu conta de que está envelhecendo ou que já envelheceu? Ou só enxerga a velhice da outra pessoa? Nossa! fulana está tão envelhecida!!! Eu estou bem mais nova do que ela!!!
De fato, a maioria das pessoas abomina a ideia de envelhecer. O envelhecimento nos atinge não apenas no aspecto físico, mas também nos aspectos biológico, psicológico, social e cultural. A sociedade ocidental demonstra, ao longo de sua história, uma atitude de desvalorização da velhice.

Na Grécia, a beleza, a força e a juventude eram elogiadas, e a velhice era vista como uma etapa de declínio e decrepitude. Nos períodos Medieval e Renascentista, a velhice era vista como o pior estágio da vida humana. Essa visão permanece até os dias atuais, de uma forma silenciosa, mas não menos discriminatória.

Simone de Beauvoir, escritora, filósofa existencialista, feminista e ativista política, abordou, de forma científica, pluridimensional e profunda, o tema da velhice em livro de sua autoria, publicado em Paris, em 1970, pela Éditions Gallimard, sob o título de “La Vieillesse”, posteriormente traduzido para a língua portuguesa e publicado no Brasil, em 1990. Essa obra repercutiu no mundo inteiro, especialmente nos países ocidentais, nos quais a população em idade avançada é desprezada, abandonada, excluída e violentada pelos diversos segmentos sociais, incluindo o meio familiar e, principalmente, naqueles mais pobres.

No Brasil, muitos estudos e livros foram publicados, com base na obra da escritora, no campo da saúde, do trabalho, da participação social, da política, da psicologia etc. Destaco aqui o livro “Memória e Sociedade: Lembranças dos Velhos”, de autoria de Ecléa Bosi, psicóloga social, considerada a maior intérprete brasileira de Simone de Beauvoir, no tocante à temática da velhice. Todos eles denunciam a situação de desvalorização e desumanização social da velhice na sociedade brasileira.

É importante destacar aqui as culturas do mundo oriental que, em sentido contrário, valorizam a pessoa idosa. A China, o Japão e a Coreia, por influência de Confúcio, têm como tradição cuidar bem dos velhos e reverenciá-los, uma vez que eles simbolizam a dignidade, o respeito e a sabedoria. Os judeus também respeitam muito os idosos por sua experiência e seu conhecimento e, por isso, cobram o respeito e a obediência das crianças e dos jovens em relação a eles.

No Brasil, não é fácil ser velho. Atualmente, nossa cultura supervaloriza a juventude. Ao velho é atribuída uma incapacidade não só física, mas mental. Os indígenas brasileiros são uma exceção à regra, porque consideram os anciãos como a memória viva de suas crenças, suas tradições e seus valores.

Ocorre, entretanto, que a população brasileira está envelhecendo. Levantamento realizado pelo IBGE indica que 14,7% da população residente no Brasil, em 2021, tinha 60 anos ou mais. Em números absolutos são 31,23 milhões de pessoas, o que representa um aumento de 39,8%, nos últimos nove anos. O Brasil passa a ocupar, gradativamente, um dos primeiros lugares no ranking mundial de população idosa.

Imagem de vários idosos sorrindo
GlobalStock de Getty Images Signature/ Canva

Esse aumento gradativo da população idosa vem motivando ações governamentais e não governamentais, até certo ponto bem-sucedidas, na esfera das políticas públicas como, por exemplo, aquelas relacionadas à Previdência Social, à saúde pública, aos direitos sociais, à educação, à cultura e ao lazer. No entanto, ainda há muito o que fazer quando a questão da velhice é articulada aos problemas próprios de uma sociedade capitalista, que é excludente por natureza.

É necessário focar na velhice das pessoas que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, no cotidiano das pessoas idosas que são obrigadas a trabalhar na rua, nas pessoas idosas que vivem em asilos e hospitais psiquiátricos etc. São desafios complexos que demandam ações contínuas e integradas entre o Estado, entidades públicas e privadas e os diversos setores da sociedade civil.

O Estado e a sociedade brasileira estão em débito com a pessoa idosa, excluída cruelmente do processo de desenvolvimento social. Afinal, o fenômeno do envelhecimento da população não surgiu repentinamente e não pode mais ser ignorado.
E você, que está envelhecendo ou já envelheceu, não acha que é preciso encarar a sua velhice? “Como?” — poderá me responder — “É muito difícil envelhecer numa sociedade industrializada e tecnológica, onde tudo acontece e se transforma com muita rapidez e que exige das pessoas muita agilidade, flexibilidade e versatilidade!”

Concordo com você. O nosso modelo de sociedade, que valoriza a produtividade e o lucro, dá as costas para a pessoa idosa. Chegou a hora da aposentadoria. Afinal, o que você produz?
É isso mesmo? E sua identidade, você perdeu também? Você vai “ficar encostado” e deixar de ser sujeito de sua história, construída com dedicação, amor e sabedoria? Vai alienar-se do contexto social em que vive, ficar recluso no “seu quadrado”, vivendo a sua vidinha, ouvindo seus filhos e netos afirmarem que você não sabe mais de nada?

Você não acha que pode fazer alguma coisa para preservar ou resgatar o sentido de sua vida na velhice? Refiro-me a uma atitude positiva que resgate a trajetória de sua existência.
Em uma das passagens do livro acima citado, Simone de Beauvoir afirma:
“Para que a velhice não seja uma irrisória paródia de nossa existência anterior, só há uma solução — é continuar a perseguir fins que deem um sentido à nossa vida: dedicação aos indivíduos, à coletividade, a causas, ao trabalho social ou político, intelectual, criador.

Contrariamente ao que aconselham os moralistas, é preciso desejar, na última idade, paixões fortes o bastante para evitar que façamos um retorno sobre nós mesmos. A vida conserva um valor enquanto atribuímos valor à vida dos outros, através do amor, da amizade, da indignação, da compaixão.”

A solução proposta por Simone de Beauvoir não lhe parece essencial ao redimensionamento da imagem da velhice? Vamos refletir. Nós, que estamos velhos, mas não fazemos parte do contingente das pessoas idosas desamparadas, nós que tivemos o privilégio de estudar e trabalhar dignamente, não poderíamos fazer alguma coisa por aqueles que não tiveram a mesma sorte? Ou vamos continuar vivendo “com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”? Nada nos motiva? Nem mesmo o desafio de superar a nossa invisibilidade?

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Que outra velhice ignoramos, além da nossa? A velhice de nossa empregada doméstica que permanece analfabeta, ao contrário de nós, que fizemos o curso superior e recebemos uma boa remuneração mensal? A velhice de algum parente que vive esquecido num asilo qualquer? A velhice dos moradores de rua que vivem nas proximidades de nossa casa?

Se vivemos entediados em nossa velhice e não encontramos sentido na vida presente, não teremos nós deixado de dar sentido à nossa existência até hoje? Beauvoir nos provoca com uma indagação: “Como deveria ser uma sociedade, para que, em sua velhice, um homem permanecesse um homem? A resposta é simples: seria preciso que ele fosse tratado como um homem.” (“A Velhice”, op. cit.)
Essa reflexão é fundamental para todo ser humano, inclusive para aqueles que pensam que a velhice nunca vai chegar.

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

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