Era bem comum que Lúcio aparecesse na casa de Rômulo sem aviso prévio, já que os dois amigos moravam bem próximos e ambos gostavam de levar bons papos nos momentos livres que encontravam. Mas aquele domingo lhe reservara uma surpresa com que não contava: tão logo entrou na sala, ele deu com uma mulher que não conhecia, que Rômulo apresentou como uma amiga de longa data. Neste aspecto, não havia novidade: apesar dos anos de convívio de ambos, Rômulo era muito reservado quanto aos seus contatos pessoais, e Lúcio podia contar nos dedos os que chegara a ver desde que se conheceram.
Manuela se mostrou como uma daquelas mulheres que sempre o encantavam, não só pela aparência incomum – esguia, olhar doce, sorriso franco – quanto por uma postura altiva e inteligente que o atraía bastante, pelo nível dos diálogos que poderia travar com elas, e que para Lúcio era o principal fator de atração. Ele admirava aquele tipo de mulher franca e decidida que se colocava frente a um homem de igual para igual, sem se intimidar ou, ao contrário, assumir pose de “coquete”, como ouvira a mãe se referir muitas vezes àquele tipo de mulher preocupada com a aparência apenas para agradar e seduzir os homens. Bem diferente disso, Manuela o atraíra por aquele jeito direto e, ao mesmo tempo, agradável de se expressar, acompanhando a fala com gestos graciosos que colocavam ainda mais ênfase no que ela falava. Completava seu encanto pessoal a saia xadrez com fivelas nos quadris que repetia o padrão da boina à francesa, o que lhe dava um toque gracioso, mas sem encobrir os cabelos encaracolados que mal chegavam aos ombros.
A conversa enveredou para uma dita viagem de carro, combinada alguns dias antes, aproveitando o feriadão daquela mesma semana. Eles o passariam na casa de praia de outro amigo de Rômulo, na Região dos Lagos. Lúcio se lembrou de Pedro – que os estaria hospedando – de quando fora com Rômulo à casa dele e da esposa, no tempo em que ainda moravam em Niterói.
– Ah, é o Pedro? Eu me recordo bem dele, daquela vez que fomos visitá-lo em sua casa e que, por sinal, ficava bem perto da minha. – lembrou Lúcio.
– Exatamente! – completou Rômulo. – Mas olha só: você não gostaria de ir com a gente? O Pedro já tinha me falado que gostou muito de você, e tenho certeza de que ficará feliz se viesse junto. Planejamos ir no carro da Manuela e, além de nós, só está indo o Laerte. Portanto, vai ter lugar no carro. Combinado então?
– Puxa, que legal! É claro que vou gostar de ir, se não tiver problema!
– De jeito nenhum – completou Manuela – parecendo animada com o convite estendido a Lúcio naquele feriado prolongado que iriam passar juntos.
E complementou, dirigindo-se ao novo amigo:
– E isso vai resolver outro problema, Lúcio: eu esqueci de renovar minha carteira, que venceu semana passada, e assim você pode ir dirigindo o meu carro, já que Rômulo não dirige, como você sabe. Podemos contar com você?
– Mas é claro! Com o maior prazer, já que estou entrando quase de “penetra” nessa história! – e todos riram gostosamente da espirituosidade de Lúcio.
Na quinta-feira, bem cedinho, Lúcio toca a campainha do apartamento de Rômulo e já encontra Laerte com ele, ambos de malas à vista para pegarem a estrada. E os três não tiveram sequer tempo para terminar a conversa que iniciaram quando o celular de Rômulo tocou, com Manuela avisando que já estava em frente ao prédio aguardando por eles. Foi só colocar as malas no elevador e logo estavam no carro com Manuela: Rômulo e Laerte se acomodaram no banco traseiro, e Manuela passou para o lado do carona para que Lúcio assumisse a direção.
– Foi uma “mão na roda” – literalmente – você ter vindo, Lúcio, pois com certeza a gente deve encontrar várias barreiras na Via Lagos por conta do feriado, e não fosse você estar dirigindo, poderíamos ter o carro guinchado! – comentou Manuela.
– É, imagino que sim! – respondeu Lúcio, puxando o cinto de segurança, e logo pegavam a rodovia que os levaria para o destino onde Pedro e Mara os aguardavam.
Com o olhar fixo na estrada por conta do trânsito intenso, Lúcio participava pouco da conversa que rolava entre os outros. Mas percebeu pelo menos o nome de Pedro sendo mencionado várias vezes, sem se ligar no contexto dos assuntos por ter a atenção concentrada no percurso. Poucas horas depois, buzinavam na porta da casa de praia, sendo recebidos efusivamente pelos donos do enorme casarão de design colonial, que possivelmente fora a residência de algum fazendeiro.
Pedro e Mara fizeram as honras da casa, acompanhando-os em seguida até os aposentos reservados para cada um. Eram quartos enormes de paredes grossas e pé direito alto, de texturas brancas e caiadas, e com grandes janelas azuis. Tão grandes eram esses quartos que cada um continha duas ou três camas, e o piso ainda era original – naquele tradicional “vermelhão” de cimento encerado – o que emprestava ao ambiente aquele toque acolhedor de fazenda de inícios do século XX. Lúcio ganhou um quarto só para ele, usando a outra cama para acomodar sua bagagem. Manuela foi instalada no quarto contíguo ao seu, enquanto Rômulo e Laerte escolheram dividir um terceiro quarto.
Os amigos estavam visivelmente cansados da viagem, devido às muitas horas em que paravam o tempo inteiro pela estrada engarrafada, como acontece em todo feriadão de quem busca acesso à Região dos Lagos. Os anfitriões sugeriam então que se recolhessem mais cedo naquela noite, tão logo terminassem o jantar, e Lúcio se sentiu aliviado ao se jogar na cama, já que a tensão de quem está na direção – notadamente num trânsito pesado como aquele – se faz muito mais sentida do que nos que vão de carona, que podem se distrair com a conversa a ponto de nem perceber a duração da viagem.
Lúcio aproveitou aqueles momentos que antecediam o sono para atualizar a leitura do livro que trouxera, hábito que mantinha desde sempre. Acomodou-se então no encosto da cama, sem camisa, e já iniciava a leitura quando um leve toque na porta, deixada apenas recostada, se fez ouvir.
– Posso entrar? – perguntou Manuela.
– Claro! Entre! – respondeu ele, fechando o livro e fazendo menção de pegar uma camisa.
– Por favor, não se incomode! – reagiu ela. – Está muito cansado para um papo?
– De modo algum! – mentiu ele. – Eu sempre leio um pouco antes de dormir. Você chegou num bom momento!
Manuela se sentou aos pés da cama e apoiou o tronco sobre os cotovelos, de modo a poderem conversar tranquilos, dando então início a uma conversa leve e descontraída, o que Lúcio percebeu como um jeito bem natural da nova amiga. O suave perfume de rosas que ela exalava e os cabelos ainda úmidos denunciavam que Manuela saíra do banho direto para o quarto dele, aumentando ainda mais aquele clima de relaxamento e prazer que sua presença emprestava ao ambiente. Simplesmente passaram um bom tempo ali, falando de coisas que pareciam chegar ao sabor do vento, a ponto de o rapaz perder a noção do tempo sobre o quanto isso se estendeu. O que sabia é que tinham atravessado aquelas horas desfrutando da companhia um do outro, e ele já nem se lembrava do momento em que passaram daquela conversa agradável e intimista para a tórrida noite de amor que se seguiu.
Manuela acordou antes de Lúcio e passou alguns minutos apenas curtindo o cheiro dele e acariciando o braço que ele ainda mantinha sobre seus seios. Alguns minutos se passaram até que Lúcio abrisse os olhos, esboçando um preguiçoso “bom dia”.
– Bom dia, meu amor! – respondeu ela, beijando-lhe a testa e acariciando-lhe os cabelos. – Fique aí curtindo o calorzinho da cama enquanto vou ao toalete, está bem? Você quase não dormiu!…
– Nós dois! – sussurrou ele próximo aos ouvidos dela, enquanto Manuela se levantava.
Um leve ranger de portas e a voz de Rômulo do lado de fora denunciou sua presença:
– Bom dia! Posso? – perguntou ele, empurrando levemente a porta. Manuela, que já saía do banheiro com a toalha enrolada ao corpo, se antecipou:
– Claro, Rômulo. Entre! – disse ela. – Nós acabamos de acordar!
– Desculpem. Pela hora, imaginei que já tivessem se levantado.
– Que horas são? – perguntou Lúcio, ainda sonolento.
– 10:08h! – respondeu o amigo.
– Minha nossa! – exclamou ele, sentando-se na cama. – Não pensei que já era tão tarde! A essa altura, perdemos o café da manhã, né?
– Sim, é verdade! – respondeu Rômulo. – Mas por uma boa razão, com certeza! – completou, lançando um olhar ao mesmo tempo de cumplicidade e malícia para Manuela.
Ela não pareceu nem um pouco constrangida. Ao contrário, era visível o clima de bem-estar e satisfação que estampava no rosto e, como era de hábito, parecia não ver nada ali que precisasse esconder de qualquer pessoa. Já Lúcio sentiu um leve desconforto ao se levantar sem suas roupas para alcançar o roupão, mesmo com toda a intimidade que tinha com Rômulo. Ter sua nudez exposta no mesmo ambiente dividido pelos três mexeu um pouco com o sentimento de intimidade dele, que nunca antes fora invadida pelo amigo. Logo em seguida, porém, estavam vestidos e se dirigindo para o jardim de inverno, para se reunirem aos outros três.
– Bom dia, bom dia! – disse Lúcio aos que os esperavam, ao que Laerte respondeu “Boa tarde!”, lançando-lhes o mesmo sorriso que vira no rosto de Rômulo momentos antes. Pedro e Mara os receberam com um caloroso e sonoro “bom dia”, convidando-os a se sentarem na sala iluminada pelo sol lá de fora, e que quase permitia sentirem o cheiro das flores do jardim para além do vidro que os separava dele. Lúcio sentou-se sobre uma das poltronas de vime e Manuela arrastou a sua para perto da dele, enlaçando-o pela cintura e encostando a cabeça em seu ombro.
Ainda que visse aquilo como natural, já que estavam entre amigos, e um envolvimento amoroso não seria nada incomum entre pessoas maduras e adultas que acabavam de se conhecer, Lúcio procurou se mostrar tão à vontade quanto Manuela, e logo Pedro os convidava para irem para a sala de jogos e se distraírem até a hora do almoço.
Mais do que os amigos Rômulo e Laerte, com quem já se relacionava de longa data, aquela reação de absoluta naturalidade por parte de Pedro e Mara passaram a Lúcio a mensagem de que eram pessoas não afeitas a julgamentos pessoais, o que o deixou mais à vontade, pois que continuaram se comportando, tanto com ele quanto com Manuela, como se já tivessem chegado ali como um casal. Para Manuela, então, amiga dos donos da casa de longa data, assim como Rômulo e Laerte, pareceu a Lúcio que os cinco estavam bastante acostumados a tal postura desde há muito, e que o “estrangeiro” ali, na verdade, era ele. Daí porque parou de estranhar os carinhos de Manuela na frente dos amigos, inclusive para trocarem beijos sem que os outros demonstrassem qualquer surpresa.
Aquele segundo dia – uma sexta-feira imprensada entre o feriado e o fim de semana seguinte – transcorreu no mesmo clima de familiaridade até o meio da tarde, quando Pedro lembrou Manuela de um compromisso acertado entre eles antes mesmo da chegada dos quatro amigos à cidade:
– Manu, não se esqueça de que o Pedro está chegando às quatro! Fique atenta para não se atrasar na hora de ir buscá-lo na rodoviária.
– Não esqueci, querido! Daqui a pouco iremos até lá para apanhá-lo! – respondeu a moça.
O “iremos” dito por Manuela deixou claro para Lúcio que ela se referia a eles dois. Ela iria com ele, que provavelmente seria quem estaria na direção:
“Hein? Como assim? De quem eles estão falando?” – perguntou-se Lúcio, sem entender bem o que estava acontecendo. “Quem é esse outro Pedro que Manuela precisa buscar na rodoviária junto comigo?”
Mas a resposta viria em seguida, antes mesmo que Lúcio precisasse perguntar alguma coisa, e para total espanto dele frente à naturalidade com que tratavam o fato:
– Você sabe como seu noivo lida com horários, não é? Se o ônibus adiantar a chegada e você não estiver lá, o clima pode mudar! – completou Mara.
“Noivo? Manuela tem um noivo?” – e a cabeça de Lúcio parecia ter entrado em colapso com tantas perguntas que lhe assaltaram o cérebro de uma só vez. Ele olhou para Manuela, que continuava rindo e brincando como se apenas lhe tivessem lembrado de um detalhe que não alteraria nada do que estava acontecendo ali. Os outros quatro se comportavam exatamente da mesma maneira, provocando em Lúcio o impacto de quem estava vivendo uma situação que se aproximava do surreal!
Tomado de uma ansiedade repentina, Lúcio não ousou fazer qualquer pergunta, de modo a não provocar um clima diferente do que reinara no ambiente até aquele momento, e apenas dirigiu-se a Rômulo como se tivesse algo a lhe mostrar:
– Rômulo, você pode vir comigo ao meu quarto? Precisava de sua ajuda! – disse.
– Claro! Vamos lá! Se eu puder ajudar…
Lúcio não conseguia sequer entender o turbilhão de emoções que rolavam dentro dele, como se um vulcão estivesse prestes a explodir em lavas, com potencial para destruir tudo à sua volta:
– Rômulo, o que está acontecendo? Manuela tem um noivo, e ele está chegando aqui agora, é isso mesmo que eu ouvi?
– Agora quem não está entendendo sou eu, Lúcio. Você sabia do noivado da Manuela e de que o Pedro, o noivo dela, estaria chegando no final da sexta justamente porque a empresa dele não aderiu ao feriadão. Por que dessa surpresa agora? Nós viemos falando nisso durante a viagem em vários momentos!
A cabeça de Lúcio nesse momento entrara em “looping”, tentando se recordar em que momento eles falaram daquilo no caminho, e por que algo tão importante quanto aquilo não chamara sua atenção. “Como aconteceu isso? O que conversaram entre eles para eu não perceber que falavam de duas pessoas diferentes? Por que ela não me disse nada, depois de tudo o que rolou entre nós?”
O cérebro de Lúcio parecia uma caldeira, como se lhe faltasse o ar, e de repente uma única saída lúcida brotou daquela tempestade interna, bem no momento em que Manuela girou a maçaneta e os interrompeu:
– E aí, já conseguiram resolver o problema? Lúcio, já passa das três e precisamos seguir para a rodoviária. É bem pertinho, sim, mas precisamos contar com algum imprevisto no caminho, ou até o ônibus do Pedro chegar antes da hora. Vamos?
Pedro não soube de onde tirou aquela reação tão instantânea para responder a Manuela:
– Me dá alguns minutinhos só, Manu. Vai esquentando o carro na garagem que em seguida te encontro lá, ok? – disse ele, sem parar para pensar como isso lhe brotara de dentro no automático, como solução para escapar da tormenta que parecia arrastá-lo para um precipício.
Manu saiu do quarto, e ele se pôs a arrumar freneticamente sua mala, sob os olhos atônitos de Rômulo:
– O que que’cê tá fazendo, Lúcio? Por que está arrumando a mala correndo desse jeito?
– Estou indo embora, Rômulo! Não vou ficar aqui no meio disso tudo!
– No meio de tudo o quê? Me conta, cara! Parece até que você não sabia do que iria acontecer…
Lúcio parou com a arrumação por um instante, apenas para olhar fixamente nos olhos de Rômulo, e respondeu, retomando o mesmo ritmo na preparação da bagagem.
– Realmente!… Não tinha a menor ideia! – disse ele, rodando o “feche-eclair” da mala e puxando-a pela alça em direção à porta.
Chegando à sala, deu com Pedro e Mara, que se surpreenderam com ele puxando a mala atrás de si:
– Ei! Aonde vai com essa mala? – perguntou Pedro, diante da postura resoluta de Lúcio, que respondeu de pronto:
– Tenho um compromisso urgente e vou aproveitar a carona de Manuela para embarcar na rodoviária!
Mara e Pedro se entreolharam, sem ocultar a expressão de surpresa em seus rostos, que aumentou ainda mais quando Rômulo entrou atrás dele:
– Lúcio está indo embora! – falou.
O casal de novo se olhou e sentou sem dizer palavra, mas com um semblante pesado de absoluta desolação, como se imaginassem o que se passara para aquela decisão tão abrupta do rapaz, sem nenhuma preparação prévia nem ao seu amigo mais chegado. Lúcio virou-se num gesto firme e pegou a escada para a garagem.
Lá embaixo, Manuela o esperava com o motor ligado, e ao vê-lo, passou para o lado direito para que ele assumisse a direção. Ela o ouviu bater o porta-malas traseiro, mas ele travou a porta e arrancou sem dizer coisa alguma, tomando o caminho da rodoviária. Diante do silêncio do namorado e do seu semblante carregado, Manu perguntou:
– O que aconteceu, amor? Você está calado. Algum problema? – disse ela.
A pergunta, seguida daquele “amor” dito no mesmo tom de sempre – como se nada estranho estivesse acontecendo – explodiu na cabeça de Lúcio como se estivesse vivendo um teatro do absurdo sem entender como entrara nele:
– Problema? Não! Nenhum problema! – respondeu ele, sem tirar os olhos da estrada:
– Apenas a mulher que dormiu comigo e me tratou como namorado tem um noivo! Nada demais, não é mesmo? – E Lúcio a olhou num relance, para voltar-se de novo para a estrada. A frase, porém, dita de forma ríspida e semblante contraído, pareceu atravessar Manuela inteira, que se assustou com a frieza daquele olhar. Lúcio crispou os dedos no volante, como se tentando manter o autocontrole. Sentia-se pura emoção, como poucas vezes se sentira em toda a sua vida, a ponto de não saber se continuaria senhor de si no próximo minuto. Manuela se deu conta de que ele se sentia como se uma corredeira o arrastasse, sem saber aonde o levaria, e por um instante pareceu ter-se assustado, mas logo retomou sua postura normal:
– Você está com ciúmes do Pedro? – perguntou ela. – E é por isso que quer ir embora? Eu vi a mala pelo retrovisor, Lúcio, mas não tive tempo nem de entender o que estava acontecendo…
– Ah!… Você não entendeu o que está acontecendo! – repetiu ele em tom mordaz. – E o que me diz de mim? Você acha que eu estava entendendo o que estava acontecendo? Você me tratou como se eu fosse seu namorado perante todo mundo, Manuela, e de repente descubro que você tem um noivo, e que ele estava vindo ao nosso encontro. Simples isso, não? Por que eu deveria ir embora?
Manuela quis dizer algo, mas foi interrompida com Lúcio ocupando uma das vagas de estacionamento frente à rodoviária e, ato contínuo, retirando a mala do bagageiro para puxá-la em direção ao saguão. Ele se dirigiu à bilheteria e comprou a passagem no primeiro carro que sairia para o Rio. Ela o acompanhava calada, até o momento em que Lúcio se posicionou na plataforma de embarque e ela pôde então falar com mais calma:
– Se está imaginando que Pedro vai criar confusão por conta do que aconteceu entre nós, saiba que isso não vai acontecer!. – e ela colocou ênfase nas palavras, o que deixou Lúcio ainda mais confuso. “Meu Deus, o que é isto?” – pensou ele.
Mas ele não fez mais nada, adotando uma mudez que deixava um clima de tensão em torno dos dois, ainda que, de fora, o silêncio fosse a única coisa perceptível a quem se aproximasse. Manuela ainda tentou demovê-lo de esperar pelo ônibus, mas ele não pronunciou mais qualquer palavra. Apenas fixou o olhar no pátio junto às plataformas onde os ônibus encostavam, aguardando pelo seu, mas o tempo que esperou nunca lhe parecera tão longo!
Foi o primeiro a entrar, tão logo o motorista liberou o embarque aos passageiros, e dali em diante não soube de Manuela. Sucedeu-se um tempo de viagem em que Lúcio não conseguia organizar os pensamentos, de modo a entender tudo o que acontecera desde que entrou no carro de Manuela, ainda no Rio. Tudo lhe parecia sem nexo, louco demais para se encaixar em seu cérebro que se guiava pela lógica. Mas lógica era tudo o que os acontecimentos daqueles últimos dois dias não lhe mostravam.
Os dois dias de feriadão que ainda restavam pareceram dois séculos para Lúcio, que aguardava pelo retorno de Rômulo para ajudá-lo a entender minimamente aquele redemoinho em que se transformara o seu cérebro. O amigo chegaria tarde da noite, e até que amanhecesse para estar com ele, Lúcio de novo iria viver mais uma noite interminável, até que o sol da manhã o colocasse no elevador do prédio de Rômulo.
Foi uma conversa densa, ainda que curta, como ainda não houvera na amizade dos dois desde que se conheceram. Uma hora mais tarde, Lúcio tomou o elevador para finalmente dar por encerrada aquela história que ele não sabia dizer se fora uma aventura ou uma alucinação. Rômulo lhe contara que no casarão o clima posterior à sua saída foi de perplexidade, e até isso foi de difícil entendimento para Lúcio, que deixou Rômulo falando sem que o interrompesse com perguntas, após o amigo lhe dizer que todos – inclusive Manuela – haviam interpretado sua reação como uma “crise de ciúmes”.
Um muro invisível parecia ter-se instalado entre os dois ao ouvir tal coisa pela boca do próprio Rômulo. “Uma crise de ciúmes!” – repetiu a si mesmo, concluindo que não haveria mais nada a ser dito sem emaranhar ainda mais aquela teia de emoções que o tomou de assalto. E ele repetiu muitas vezes a frase de Rômulo para si mesmo, sacudindo a cabeça diante da própria estupefação, em que o amigo nunca lhe parecera desprovido de bom senso naquele nível. Tinha uma inteligência que ele sempre reputou como acima da média, para mergulharem muitas vezes em reflexões profundas.
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Mas ele também conhecia bem o pensamento de Rômulo em questões de moralidade, e nesse ponto eram água e vinho: enquanto Lúcio era profundamente ético em seus valores, a ponto de avaliar cada ato seu independente da circunstância, os componentes desse seu contexto pareciam não fazer muito sentido para Rômulo. O amigo tinha valores nobres, sim, que não lhe permitiam enxergá-lo como imoral. Não! Rômulo não era uma pessoa imoral, mas Lúcio sabia que de sua amoralidade para não se ocupar com julgamentos de qualquer natureza, muitas vezes atingindo níveis que ele não conseguia alcançar.
E ele acabou concluindo que aquele traço da personalidade de Rômulo não era diferente dos demais, com quem dividira aqueles dois dias passados no casarão, pois que ninguém ali parecia se abalar com o fato de Manuela ter escancarado sua relação com ela, e depois falarem da vinda do noivo dela e do convívio nos dias subsequentes como algo que sequer fosse digno de nota.
Ao sentir a poeira baixar, após toda a epifania que lhe assomara da alma, Lúcio continuou sem respostas para muitas perguntas que ficaram no ar, como qual teria sido seu real papel naquele contexto inusitado e intrigante, para dizer o mínimo, que antes não imaginara ir além de um encontro de amigos para um feriadão. Tudo acontecera de forma espontânea, ou ele fora envolvido numa trama sem sentido algum? A “carteira vencida” de Manuela fora simples coincidência, ou uma “armação” para ele se sentir comprometido com a viagem? Até que ponto os donos da casa estiveram alheios a todo aquele contexto esdrúxulo entre ele e Manuela? Qual teria sido o real propósito dela ao insistir em sua ida, ter ido ao seu quarto, e ainda ver com normalidade seu encontro com o noivo sem confronto, como afirmara com tanta segurança?
“Quão complexa a psique humana!” – concluiria Lúcio ao final de tudo, aceitando a ideia de que os mistérios da vida não povoam apenas os recantos escuros do universo: eles acontecem também nos mais recônditos refúgios de nossas almas!
