Convivendo

A observação do mundo através de olhos e ouvidos mais atentos

Mulher amarela encostada em grade refletindo.
Hoang Chuong / Pexels
Escrito por Márcia Leite

Um dia desses, revi uma entrevista da Dr.ª Conceição Evaristo, e me tocou muito a afirmação de necessidade de escutar, de observar, de compreender o mundo, as pessoas, o que está ao redor.

Estando já no segundo cinquentenário da vida, busquei novas maneiras de praticar o que ela apontou.

Às vezes, eu me vejo tão ensimesmada…

As coisas passam… às vezes, perdi-as… às vezes, olhava, mas não as via…

São sons que ouvia, mas não escutava…

Palavras que digitava, mas não as escrevia…

A decisão de prestar mais atenção às coisas que me cercam foi desencadeada pela fala da ilustre acadêmica, que aprendeu escutando a sua mãe, o ambiente onde estava inserida, os alunos, os amigos, palavras e expressões orais e corporais – sim, corporais que são escutáveis – e que foram traduzidas em letras e escritos.

Quando ela colocou em seu poema “Vozes-mulheres”, a possibilidade de escutar vozes interrompidas pelo domínio e pelo sofrimento:

A voz de minha filha
recolhe todas nossas as vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

(Evaristo, 2017)

Então decidi escutar o som do mar, cada vez que suas espumas se formam ao tocar a areia. Atentei-me às vozes humanas, quando conversam alegremente em uma esquina, ao telefone, em uma festa… Percebi a energia emanada pelas crianças correndo, brincando, rindo, gritando, em uma euforia que vai diminuindo e se envergonhando à medida que os anos se somam…

Mulher na beira do mar durante pôr do sol.
Julia Volk / Pexels

Escutei também o silêncio da noite, que, em uma região metropolitana, não traz a possibilidade de ser classificada como silenciosa… Os carros e motos emitem os sons de seus motores; as pessoas elevam os tons de suas vozes para que se permitam escutar… O guarda noturno aciona a sua sirene, para avisar que está atento… Gatos no cio, cães latem. Portões rangem ao serem abertos ou fechados. Os passos da chegada nas escadas e corredores. As folhas e galhos das árvores agitados pelo vento mais fresco da madrugada. Alguém que ronca fortemente, adormecido após o cansaço de um dia de trabalho. O falatório e as gargalhadas dos amigos que retornam de uma festa. Ciclistas que se reúnem para aproveitar que há menos movimento nas ruas e pedalar em grupo; o som das pedaladas e das trocas de marchas de suas magrelas de alumínio.

E cedo, no início do dia, mal o Sol começa a espalhar toda a sua luminosidade, são os pássaros que anunciam uma nova jornada. O transporte coletivo já está pronto para cumprir a sua missão, espalhando a fumaça, a cada vez menos poluente (espero eu). A conversa dos passageiros no ponto, enquanto aguardam o demorado ônibus, que nunca chega.

As xícaras, talheres e panelas que servem o café da manhã, que, nos tempos atuais, têm se tornado raros, ou ralos, ou fracos na mesa de muitos, que sofrem com as crises, que estão castigando a humanidade. O cheiro do pão quentinho saído do forno elétrico. Acho que não existem mais fornos à lenha na metrópole. Tudo é elétrico: o forno, o carro, o telefone, até a bomba d’água da companhia de saneamento. Ah! O pão quentinho… aquele que antes era de trigo ou de fécula, agora traz outras versões: de tapioca, de fermentação natural, sem glúten, multigrãos, coloridos, veganos, e outros que a imaginação humana for capaz de desenvolver. O café com leite também mudou, conservando o seu cheiro atraente. O leite, antes de vaca ou cabra, ganhou versões de plantas, sementes ou frutas secas, sendo extraído de arroz, aveia, amêndoas, coco (ops! Este não é novidade) etc. O café é comum, expresso, descafeinado, aromatizado… O preço acompanha a variedade; os bolsos, não!

Bem nos faz, também, escutar a voz gestual. Uma boa recepção em qualquer lugar, aonde se chega, traz um conforto, uma sensação de acolhimento. O sorriso de boas-vindas produz alívio e felicidade, o afeto espontâneo que traz bem-estar. O serviço bem executado. O olhar de cumplicidade. Um convite para se sentar à mesa. Uma xícara de chá ou uma taça de vinho. Perceber que o outro recepciona despretensiosa e prazerosamente. Faz até o impossível para que o outro se sinta aconchegado. Gestos que ainda encontramos em muitos cantos deste planeta.

Você também pode gostar

Há tempos, os vizinhos já não se reúnem como antigamente, na porta de casa com suas cadeiras, mas sempre dá para bater papo por cima do muro, pelas sacadas ou em suas janelas. A escuta mais praticada do século XXI se dá pelo mundo virtual. As trocas de mensagens pelos grupos via internet parecem ser menos invasivas, porque as pessoas leem e respondem quando querem, ou se quiserem, no horário que julgarem mais adequado para a vida atribulada e surda que levam. Muitas vezes, a escuta é surda, quando todos falam e ninguém presta atenção, pois só querem desabafar, falar de seus problemas, sem respostas solucionadoras por diversas vezes. A vida virtual vivida no celular. Vida de ninguém, vida de alguém, vida coletiva, vida publicada, vida compartilhada, vida invadida.

Tem outra escuta que quero sublinhar importância: a do próprio corpo. Aquela que o ser humano ora deixa sair, ora faz sufocar. A voz do contentamento com sucessos diários. A voz da dor física, do martírio mental, do tormento psicológico.

Do sucesso com a forma física, dos índices laboratoriais, da reconstrução dental, do novo penteado. A voz da alegria com as conquistas profissionais e intelectuais, as mais singelas possíveis. Da casa limpa e arrumada. Da roupa cheirosa. Do alimento bem preparado. Do passeio em família. Da natureza exuberante. Do esporte revigorante. Da comemoração. Do autocuidado. Do pertencimento e da memória coletiva. Do colo de mãe.

Mulher negra balançando os cabelos em bosque.
Gantas Vaičiulėnas / Pexels

Da dor da perda. Da enfermidade. Do medo de sair à noite. Do reconhecimento facial e da falsa condenação. Da autossabotagem. Da queda em vícios. Da insanidade. Do culto à estética deturpada e deformada. Do hacker e da LGPD*. Da falta de qualidade adequada de vida. Do envelhecimento solitário e desassistido. Dos maus-tratos cotidianos. Da falta de autoidentificação. Do abandono e esquecimento. Da invisibilização.

A escuta é privilégio que se aprende. Sempre há tempo de ressignificar o olhar atento.

Parar, abrir-se para o mundo, sentir-se pertencente ao planeta, misturar-se a tudo e a todos. Ato que vale a pena tentar e praticar.

Sobre o autor

Márcia Leite

Graduada em Farmácia e atualmente estudante da área de Humanas, mostro interesse em diversos temas. Incomodada com questões sociais e que mexem com a convivência e a saúde das pessoas.