Convivendo Meditação

Ano 2020 – o deixar-se quebrar por completo e se ver

Ilustração vetorial de 2020.
vikayatskina / 123RF
Escrito por Daiana Barasa

É comum e clichê que a cada final de ano as pessoas reflitam sobre o significado que o ano teve em sua vida. Fiquei pensando: escrevo ou não algo do tipo? Não seria algo tão óbvio? Um dos meus autores favoritos (Nelson Rodrigues) tinha um amigo que usava uma expressão com frequência: óbvio ululante. Muitas vezes é disso que precisamos: do óbvio.

O ano 2020 sem dúvida pegou a todos de surpresa. Estávamos levando a vida como sempre foi e de repente uma notícia de um vírus maluco que estava matando muita gente. Era assustador, principalmente as notícias da Itália.


Lembro que estava comemorando o aniversário da minha mãe, em janeiro, e ela comentou por cima sobre um vírus que estava matando pessoas na China, ao que nem dei assim tanta importância. Era na China, oras! Lá, tão longe. Egoísta, né?

E em pouco tempo esse problema de saúde pública foi ganhando o mundo, chegando ao Brasil… e aquilo que jamais imaginava que acontecesse aqui já estávamos forçados a viver. Isolamento social, uso de máscara, álcool em gel, o que para mim era absolutamente um roteiro de ficção à la Jack Torrance em “O Iluminado”… (risos).

Várias máscaras descartáveis na cor azul.
KarolinaGrabowska / Pexels

Sinceridade consigo mesma

Durante bons meses eu levei a vida como foi possível viver e até então tudo estava caminhando bem. Algumas atividades que antes eram tão prazerosas presencialmente tinham deixado de fazer parte da minha vida, mas tudo bem… Isso já, já passa! Não, não era e nem é bem assim.

Este texto talvez seria muito mais apropriado ao meu blog do que aqui, no Eu Sem Fronteiras, mas é aqui que ele tem de estar, porque quero falar sobre o maior caos que podemos experienciar, que é o de cair em si mesma ou sobre derrubar fronteiras em si mesmo.

Ao longo do ano fui jogando toda a lama da minha vida debaixo de algum lugar no qual não pudesse ver. Achei que seria assim, numa boa, mas as coisas foram de repente se tornando insuportáveis.

Menina de máscara descartável sentada no chão da sala mexendo no notebook.
VladaKarpovich / Pexels

Nas terapias online, caminhava às bordas do problema junto ao terapeuta, falava só aquilo que julgava ser relevante sobre o meu próprio eu. Ainda não tinha tomado completa consciência.

Você vivia no automático? Eu, sim. Um dia de cada vez, como era possível. Aos poucos foi se tornando cada vez mais caótico existir, até o dia em que cogitei a possibilidade de sumir literalmente deste mundo, por não suportar as minhas dores engolidas.

O ano 2020 expôs as minhas chagas, feridas. Me fez ver aquilo que era óbvio e que ignorava. Minha saúde emocional não resistiu mais a tanta autossabotagem, a tanta falta de amor a quem sou. Literalmente me quebrei toda.

Um livro que escrevi em 2017 só me faz sentido agora, porque como escritora a gente cria histórias e acha que é sempre para as pessoas, mas na verdade é muito sobre quem nós somos ou sobre aquilo que precisamos fazer sobre nós mesmos.

Mulher sentada no sofá mexendo no notebook, enquanto uma criança está pulando no sofá.
KetutSubiyanto / Pexels

Visão sobre si

O ano 2020 me fez ver quem sou. No ápice do meu caos, me vendo no espelho, pela primeira vez me vi mulher, não vi sob o crivo de algo que parecia feminino. Me vi mulher, com as minhas dores todas, com as minhas falhas todas, com as minhas loucuras todas.

Se tem uma coisa nesta vida que requer coragem é se mostrar. É esse desnudar da alma, que de alguma maneira eu fazia via escrita, mas o ano 2020 me fez entender que eu preciso aprender a ser nua de alma na vida. O Universo me fez me render a ele, me fez entender que não é bem assim, um dia de cada vez é um dia que eu mesma crio de cada vez.

Duas mulheres deitadas na cama abraçadas.
KetutSubiyanto / Pexels

Tive inúmeras incertezas, certezas, senti cada extremidade de minha alma em dor e não é uso metafórico, é real. A alma pode doer. O corpo físico é menos real do que o espírito e alma que carregamos.

O ano 2020 me quebrou em muitos pedaços, me fez cair de profundo penhasco, me obrigou a fazer acordos comigo mesma para que eu continuasse na jornada. Não falo sobre essa morte física, a qual também tanto se teme, mas sobre a morte de si, enquanto se vive.

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Ser de verdade

Quem sou de verdade? Isso me martelou muito nos últimos meses. Mas no espelho, quando me vi mulher pela primeira vez, percebi algo sobre quem sou que vale a pena compartilhar, porque talvez seja algo que lhe faça sentido agora ou no futuro.

Eu pari a mim mesma em dor e nasceu uma mulher em pedaços. Eu já vivi a maternidade de mim mesma. Pode parecer loucura, que seja. Mas é isso que o ano 2020 fez, me fez ver quem sou, eu escolhi assim. E estou ligando pedaço a pedaço aos poucos.

Mulher com os braços abertos no meio de um campo.
VisionPic.net / Pexels

O corpo responde às nossas emoções, ao estado de nossa alma. Podemos nos mascarar para o mundo, mas não se pode ser uma farsa a vida toda. Não se pode viver nesse esconde-esconde consigo para sempre.

Aprendi a assumir a minha tensão de maneira mais acolhedora, e que é preciso não apenas dizer o que se sente mas viver o que se sente.

O ano 2020 me fez conhecer o inferno que habita em mim. Me fez ver um lado meu escondido. O lado eu.

Pode acreditar que este texto não é só sobre mim. Deixar-se quebrar por completo é o ato mais importante que um humano pode se permitir para se ver um dia como é no espelho da verdade.




Sobre o autor

Daiana Barasa

Daiana Barasa é jornalista e escritora de ficção. É autora dos livros “Na Atemporalidade das Palavras – O Brio, o Vento e o Talvez”, pela Cia. do eBook (2016), do livro “Mulher Quebrada”, pela Chiado Editora (2017), e participou da antologia “Aquela Casa”, pela editora Verlidelas (2020).

É responsável pelo portal de desenvolvimento humano Mulher Quebrada, voltado principalmente ao público feminino.

Faz parte da oficina literária na Casa da Palavra Mário Quintana, em Santo André, todo sábado, às 15h.

É uma curiosa, acredita na humanidade, apesar do caos. Seu compromisso é com as palavras e com o mergulho interno.

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