Autoconhecimento

Eu e Tu

Amigas se abraçando.
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“Et si tu n’existais pas
Je ne serais qu’un point de plus
Dans ce monde qui vient et qui va
Je me sentirais perdu
J’aurais besoin de toi
Et si tu n’existais pas
Dis-moi comment j’existerais
Je pourrais faire semblant d’être moi
Mais je ne serais pas vrai”

Todo amante da música romântica francesa dos anos 70 já ouviu essa canção, na voz do cantor franco-americano Joe Dassin: “Si tu n’existais pas”.

Embora se trate de uma declaração de amor, as estrofes destacadas acima nos remetem a uma reflexão sobre a singularidade da relação entre um eu e o outro. Elas nos falam do significado da existência do outro em nossa vida, a tal ponto que, sem o outro, não somos ninguém, perdemos a nossa própria identidade.

Estaremos nós conscientes da real importância dessa relação nos dias atuais? Quem és tu (o outro) e o que representas em minha vida? Eu sou o outro na tua vida, mas o que significo para ti? Ao usarmos esses dois pronomes pessoais (“eu” e “tu”), indicamos que há uma relação de proximidade entre duas pessoas. Não se trata de um eu e de um tu que se ignoram, mas que convivem numa determinada circunstância existencial.

Para refletirmos mais profundamente sobre essas questões, é necessário recorrermos ao conceito de sujeito. O que é ser um sujeito? Você pode me dizer que sujeito é um indivíduo qualquer. Tudo bem, talvez você queira me dizer que é uma pessoa, alguém com uma identidade própria que se distingue de outros indivíduos. Concordo inicialmente com você, mas posso acrescentar que sujeito, no sentido antropológico do termo, é uma pessoa capaz de agir de forma autônoma e consciente. Isto é, alguém que pensa, escolhe, toma decisões e se responsabiliza por elas. Mas (sempre tem um “mas”, não é?) essas capacidades não são inatas, não nascemos prontos. Tornamo-nos tornamos sujeitos à medida em que exercemos nosso livre-arbítrio e formamos a nossa identidade, ou melhor, a “consciência do eu”. Essa consciência se forma em nossa trajetória existencial, na qual nos identificamos como um “eu” que, apesar de diferente de outro “eu”, reconhece-se nele.

Mulher asiática beijando bochecha de homem asiático.
Ganda Lukman / Unsplash

Vamos entender mais sobre isso. Sartre, filósofo existencialista do século XIX, afirmava que somos um “ser em si” e um “ser para si”. O ser em si é conceituado como aquele que tem uma essência definida. No caso do ser humano, somos alguém com atributos próprios, no entanto, enquanto “ser em si”, somos como qualquer outro ser sem consciência de si ou do mundo. O ser para si é aquela condição do ser humano que tem conhecimento de si e do mundo, o que o faz diferente de outros seres. Nesse aspecto, o ser humano assume a sua subjetividade e percebe que ela o torna único. No entanto, ao tomar consciência de sua existência, ele sente a necessidade de dar um sentido a ela. Nessa busca existencial, percebe si próprio como um ser sempre inacabado, um projeto (para frente, para o futuro). Aí brota aquela angústia que todos nós já experimentamos.

Você, caro leitor, pode me perguntar: esse filósofo não pensou na ajuda do “outro” como ele? No momento em que ele escreveu “O existencialismo é um humanismo”, acreditava que o homem só poderia contar consigo mesmo, com sua liberdade de escolha. Mas posso lhe adiantar que ele mudou muito esse ponto de vista porque ele também, como qualquer ser humano, era um “ser em construção”. Em outra obra de sua autoria “O ser e o nada”, ele afirma: “No campo da minha reflexão só posso encontrar a consciência que é minha. O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro.” Ora, se ele descreve o “ser para si” como um ser inacabado, um projeto, como poderia desconhecer a importância do outro em sua vida?

Então concluímos que podemos olhar para nós mesmos, refletir e agir por nós mesmos, mas a nossa individualidade e identidade só se concretiza na convivência e no reconhecimento do outro como um sujeito igual a nós. Em outras palavras, a nossa humanidade se realiza na intersubjetividade. Para Sartre, a intersubjetividade nasce da vergonha do outro. Mas não vamos nos aprofundar neste aspecto do pensamento sartreano porque isso foge aos propósitos deste artigo.

A partir das considerações aqui feitas, podemos perceber a importância de tomar conhecimento dos fundamentos de nossas convicções. Estamos, assim, frente a frente com o outro e precisamos muito dele, a despeito de nossas diferenças e escolhas pessoais. Porém não se trata apenas de imitá-lo, trocar ideias ou assimilar sua cultura. A intersubjetividade pressupõe o respeito às identidades e é essencialmente dialógica. Assim sendo, mesmo admitindo a natureza conflituosa das relações humanas, constatamos que, no mundo de hoje, para conviver de forma pacífica, sensata e, sobretudo, humana, devemos buscar a intersubjetividade em todas as áreas de nossa vida. Você concorda?

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Pense comigo. Nossa família, por exemplo, não é apenas um sobrenome que nos liga por laços de consanguinidade. Ela é um importante núcleo de intersubjetividade. Na convivência familiar, com palavras e gestos, formamos atitudes, hábitos e valores por meio dos quais construímos nossa identidade pessoal e o reconhecemos a identidade das outras pessoas. Em nossa família existe o eu, o tu e, sobretudo, o nós. Não é isso?

Na nossa escola acontece algo parecido. Ela não é apenas um espaço coletivo de ensino e aprendizagem. É, por excelência, o lugar da intersubjetividade no qual todos devem se reconhecer como sujeitos do processo educacional, ao trocarem experiências, aprenderem uns com os outros, contribuírem, enfim, para a concretização dos ideais ou fins educacionais.

Da mesma forma, podemos considerar que o trabalho. Enquanto dimensão indispensável à realização de nossa essência humana, requer a inter-relação dos sujeitos. Tudo que produzimos de forma coletiva, consciente e respeitosa é muito mais completo, criativo, sólido e eficiente.

Você já imaginou o trabalho de produção de nossa alimentação sem a intersubjetividade?

Mulher de costas com rio ao fundo.
David Vilches / Unsplash

Outros espaços como aqueles nos quais desenvolvemos atividades de lazer, arte, espiritualidade, cidadania… São também importantes espaços de intersubjetividade. O ser humano é autor e coautor da sua humanidade. Isso não é simplesmente maravilhoso? Como poderemos ser felizes sem mostrarmos o nosso rosto — nosso eu verdadeiro — para aqueles com quem convivemos?

Por todo o exposto, para finalizar, convido você, meu querido leitor, a retomarmos as perguntas iniciais: quem és tu? (o outro: meu pai, minha mãe, meu marido, minha esposa, meu irmão, minha irmã, meu professor, minha professora, meu aluno, minha aluna, meu ou minha colega de trabalho etc.) O que representas em minha vida? Eu que sou o outro na tua vida pessoal, profissional, espiritual, cidadã… o que significo para ti?

Acredito que, ao fazermos essa reflexão, seja possível avaliar o que já perdemos ou ganhamos em nossas relações com as demais pessoas. Talvez possamos constatar, antes de perdê-las que — como diz a canção mencionada no início do texto — “se tu não existisses… diga-me como eu poderia existir… nesse mundo que vem e que vai… eu me sentiria perdido.”

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

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