Autoconhecimento

Homo Circulator

Imagem embaçada de grande multidão no meio da cidade
Aleksandr Ozerov / Shutterstock

Por que temos tanta pressa em nossa vida cotidiana? Tamanha pressa nos faz invadir o sinal, buzinar atrás do carro que anda mais devagar e ultrapassar em alta velocidade, com muita imprudência, todos os carros que rodam à nossa frente na estrada. A mesma pressa que nos faz furar a fila, que nos impede de sentar à mesa para tomar café, almoçar ou jantar com nossos familiares.

A música “Sinal Fechado”, de autoria de Paulinho da Viola, aborda de forma criativa o cotidiano das pessoas que habitam os grandes centros urbanos.

“Olá, como vai?
Eu vou indo, e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo, em busca
De um sono tranquilo, quem sabe
Quanto tempo, pois é, quanto tempo
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
Qual, não tem de quê
Eu também só ando a cem”

A vida agitada não permite uma pausa para um encontro ou um reencontro. Não podemos perder tempo porque tempo é ouro. É a alma de nossos negócios. Esse comportamento caracteriza, essencialmente, a sociedade industrial e pós-industrial, fruto do desenvolvimento científico e tecnológico. O progresso, o desenvolvimento econômico e a força do capital transformaram as pessoas em seres autômatos, que competem entre si para garantir um lugar no futuro.

O que representa esse futuro para nós? Sucesso profissional, enriquecimento? Qual o nosso sonho de consumo? Um carro possante, uma casa num condomínio de luxo, a aquisição dos mais variados bens materiais que nos permitam ascender socialmente e garantir nosso status social? Você poderá me responder: por que não? Afinal essa é a lógica do neoliberalismo, principal sistema econômico da atualidade, que preconiza a individualização do comportamento, sobretudo no campo profissional, com o aporte da visão empreendedora.

Assim sendo, a figura de um indivíduo bem-sucedido representa a competência profissional adquirida com seu esforço pessoal e com alto grau de excelência, o que lhe possibilita conquistar um espaço privilegiado no mercado de trabalho. As escolas fazem parte dessa trama do sucesso pleno, realizando provas e mais provas, estimulando a competição desenfreada pelas notas máximas com vistas a garantir os primeiros lugares nos exames nacionais para, com isso, alcançarem lugar de destaque no ranking das avaliações. Os pais compõem esse cenário, exigindo o cumprimento das volumosas tarefas de casa, contratando professores particulares e cobrando os resultados das avaliações. Aliás, nesse contexto, o que conta é avaliação somativa, que enfatiza o aspecto quantitativo, demonstrado pelas notas obtidas pelos alunos. O foco não está, portanto, nas evidências de aprendizagem e no que elas representam do ponto de vista da formação educacional, cultural e social do aluno.

Ambiente urbano com escadas rolantes e pessoas de terno e gravata andando apressadamente
r.classen / Shutterstock

Ao refletirmos sobre o fenômeno da pressa no mundo atual, é possível compreender melhor o que George Gusdorf, eminente filósofo francês, denominou de “Agonia da Nossa Civilização”. Abandonamos o caminho do Ser e nos perdemos no caminho do Ter, ou seja, não buscamos os fins mais importantes da nossa existência e nos contentamos com a posse de bens materiais que nem sempre promovem a nossa realização enquanto pessoas humanas. Corremos para cima e para baixo, mas não sabemos onde queremos chegar. Somos o “homo circulator”, como afirma o filósofo, não chegamos a lugar algum no que se refere à nossa missão essencialmente humana.

Infelizmente, pagamos um preço muito alto por essa corrida rumo ao futuro. Deixamos de viver o momento presente e desfrutar dos momentos de lazer, de confraternização, de vivência espiritual. Deixamos de participar de atividades coletivas voltadas para o bem-estar social, para a defesa dos direitos humanos, para a promoção da saúde das pessoas e do meio ambiente de um modo geral. Renunciamos à nossa condição humana, na medida em que escolhemos unicamente a nós mesmos. Passamos a ser engrenagens que imprimem velocidade aos mecanismos de produção do mundo contemporâneo.

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PARE! OLHE! ESCUTE! A vida não é um trem descarrilhado. Se há algo que exige pressa de nossa parte é a reconquista de nossa humanidade. Um animal, seja ele uma formiga, um cachorro ou elefante, já traz na sua própria natureza aquilo que caracteriza o seu modo de ser e agir. O homem não nasce pronto, precisa construir sua existência, o que só é possível se ele desenvolve a sua humanidade e, na medida em que o faz, humaniza o mundo ao seu redor. Essa é a única razão de nossa existência. Se hoje o mundo está desumanizado, o que estamos fazendo aqui?

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

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