Convivendo

O Homem que desbravou o vazio

Sala de concreto vazia.
Daniil Peshkov / 123RF
Escrito por Luiz Gomes

Não sei como cheguei e nem mesmo como era a minha vida antes daqui. Minha primeira lembrança foi ter acordado em um espaço infinitamente vazio, de modo que, para todas as direções que eu olhava, nada mudava senão um infinito espaço em branco. Apenas eu e nada mais.

Descobri, após um tempo (ou incontáveis quantidades de tempo, não sabia ao certo), que eu poderia preencher esse vazio com tudo que eu quisesse e fazer o que eu quisesse com todas as minhas criações. Minha única limitação era a de criar consciências alheias à minha.

Sabendo desse meu poder, criei primeiramente um espaço mais aprazível para os meus olhos. Do branco ofuscante em que me encontrava quando cheguei, escureci todo o perímetro do espaço e passei a criar formas luminosas das mais variadas cores e tamanhos, que juntas criavam um conjunto fantástico e infinitamente diverso. No entanto, depois de algum tempo, já fadigado de usar minha vontade a todo momento para mover tais objetos luminosos que eu havia criado nessa imensidão negra, vi que eu poderia manipular o lugar da mesma forma que um programador manipula um software. Sendo assim comecei a criar códigos que faziam com que todos os corpos que eu havia criado interagissem sem a ação direta da minha vontade.

Introduzi ações, reações, atrações, repulsões, movimentos, atritos e de repente tudo passava a mover-se como um relógio infinitamente complexo. Por meio dos meus códigos, foi possível até mesmo que outras formas fossem criadas. Ficava maravilhado contemplando a minha recém-criação executando movimentos quase independentes, no entanto após um tempo isso também me entediou.

Percebi que através das incontáveis eras que se passavam como horas para mim, formavam-se esferas, que em alguns raríssimos casos produziam seres microscópicos em suas superfícies, os quais pareciam agir de formas ainda mais autônomas que os corpos que eu havia criado seguindo a minha programação, mas logo pereciam ante a dinâmica por mim estabelecida.

Relógio de parede branco.
Bob Clark / Pexels

Ao observar o código de fonte dessas efêmeras criaturas, percebi a complexidade das suas leis. E fiquei maravilhado por tal complexidade ter sido consequência de uma programação tão básica que eu havia feito nos corpos luminosos quando cansado de submeter todas as criações à minha vontade direta.

Vendo potencial nessas efêmeras formas de vida, que logo pereciam por ter um código de fonte complexo demais para uma perpetuação em cenários que mudavam com frequência, passei a me empenhar para criar esferas que durassem tempo o suficiente para que tais seres se conservassem no tempo.

Depois de tanto estudar esses novos códigos de programação, passei a criar seres das mais complexas formas e modos de agir. Com o tempo, me aperfeiçoei tanto na linguagem de programação que qualquer um poderia afirmar com plena certeza que alguns seres da minha criação eram dotados de uma consciência plena e alheia à minha. Eu sabia que isso não era possível, mas com o tempo a solidão começou a me abater.

Por mais que eu tivesse criado um espaço infinito de formas macro e micro que interagiam das mais diferentes maneiras, criando uma pluralidade incontável de possibilidades, eu sabia que tudo aquilo vinha de mim, e não havia ninguém além de mim que poderia olhar para toda essa obra que fiz além de mim mesmo. Após milhares de æons pensando nesse dilema, eu estava determinado a criar seres à minha imagem e semelhança que pudessem se replicar e pensar por conta própria. — Mas como isso poderia ser feito se eu não posso criar consciências alheias às minhas, senão por uma programação que as simule? — perguntava a mim mesmo.

Como eu não poderia criar consciências novas, me desdobrei em vários “eus”. Mas mesmo me desdobrando, compartilhávamos da mesma consciência simultaneamente. Sendo assim, como em um acordo entre eu e… eu, minhas outras cópias concordaram em esvaziar suas memórias. Dessa forma apenas eu tinha acesso às minhas consciências duplicadas, mas elas não tinham à minha.

Depois disso, aproximei-me de uma determinada esfera já povoada por criaturas cujos códigos de programação eram tão complexos que já pareciam agir por conta própria. Pus nessas criaturas um mecanismo de metamorfose lenta, fazendo com que cada geração chegasse mais próxima à minha aparência em um período de milhões de ciclos translacionais e dotei essas criaturas das minhas consciências adormecidas, de modo que tais consciências, sem memória, mas contendo minhas aspirações, entrassem em simbiose com a programação desses seres e criassem possibilidades ainda mais diversas, em que todas as impressões, fossem elas de espanto, alegria, dor, sofrimento, esperança, contemplação e principalmente memórias novas, fossem vivenciadas por mim.

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Dessa forma, tendo chegado o mais perto possível da criação de consciências apartadas da minha própria, pude estar em contato com todos os sentimentos oriundos da interação dos seres conscientes com a minha própria criação. O problema da solidão e do tédio fora resolvido. Com essa estratégia, minha mente se expande a proporções que eu jamais imaginaria.

Já que não sei como cheguei e nem quando sairei daqui, terei toda a eternidade para me entreter. E quando enjoar, apago tudo e começo de novo.

Mas às vezes tenho a impressão de que já fiz isso…

Sobre o autor

Luiz Gomes

Considero-me um buscador desde muito cedo. Não sou capaz de afirmar que nasci com essa inclinação, mas desde criança já mostrava entusiasmo para com os assuntos do alto. Passei por muitas religiões e filosofias ao longo da minha vida, e sem me prender venho conhecendo as mais variadas perspectivas dos que se atrevem a procurar por formas alternativas de significar a vida. Considero toda a minha jornada, como o próprio nome diz, uma jornada. Uma busca constante pela autorrealização, que no final das contas se traduz pela própria jornada.

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