Convivendo

Só mais um bombom pra desapegar

Mulher pegando com as duas mãos granulado colorido
Sharon McCutcheon/Pexels
Escrito por Marisa Pretti

Luísa, minha filha, a segunda da ninhada de três gatinhas, colecionava papéis de bombons, organizados tanto quanto ela, virginiana.

As embalagens esticadíssimas, coladas em papel sulfite, escorregavam dentro dos plásticos transparentes e ali ficavam, presas pela ferragem prata em uma pasta catálogo preta com a capa e a contracapa decoradas.

Até outro bombom ser degustado.

Vejo a pasta dela separada entre outras coisas para doação descartada do armário. Ela, crescida e adolescente, diz que não sente mais vontade de colecionar.

Puxa, filha, tanto trabalho para juntar essas embalagens lindas e a coisa termina assim?

Sem nenhuma mordidinha em um último bombom de despedida?

É isso, mãe!

Por minha máxima teimosia, a pasta meio mofada está engavetada até hoje. Guardei. Nunca se sabe.

E eu sei. Quem guarda tudo mofa ainda mais que a pasta.

Hoje, ela coleciona chaveiros, já tem bem mais de 800.

A cada viagem dela, nossa ou de amigos, é fato: aumenta o tilintar das argolas na coleção.

Por que guardei as embalagens de bombons? Por ela ou por mim?

Provavelmente pela tentativa de parar o tempo e tê-la sempre, menina, ao meu lado.

Minha primeira coleção – compulsória, é fato – começou com pulseiras.

Mulher usando pulseiras
Godisable Jacob/Pexels

Todo dia 14 de maio, meu aniversário, minha mãe presenteava-me com uma pulseira de prata. Decorada com delicados ramos e florezinhas em relevo. Em combinações diferentes a cada ano.

Conforme eu ia crescendo, as pulseiras cresciam em quantidade e diâmetro.

Um dia, na escola, no tédio de uma aula de história, comecei a brincar com uma das pulseiras, quando tive a criatividade de uma cabeça de alfinete… e tlec! Encaixei a pulseira do décimo ano entre os meus dois separados dentes da frente. Os incisivos centrais, da arcada superior!

Entalada a pulseira no vão entre os dentes, começa minha tentativa de tirar a argola. Disfarcei um bom tempo. Quando percebi que não soltava, nem precisei avisar a professora, que notou meu choro baixinho.

Lembro-me da fisionomia dela, estática!

Procurando, imagino agora, decifrar, e penso enquanto escrevo, minha aparência de desespero que devia ser um tanto parecida com a de uma noiva virgem indiana no dia do casamento: com um grande piercing de argola preso na aba do nariz!

No meu caso, nos dentes! Com a gengiva inchando e a argola que nem ela nem a diretora conseguiram tirar.

Corre ligar para minha mãe, que estava no trabalho. E nem celular existia para agilizar.

Fato. Minha mãe nem deve ter se preocupado. Viúva, responsável por dois filhos e com a criatividade além da conta, era habitual ser presenteada com surpresas pouco agradáveis.

Chega a mãe. O olhar azul, cor de céu em dia de verão, mudou para um azul-esverdeado, cor de mar em dia de tempestade, traduzido fielmente em: “Me aguarde, conversamos em casa, agora vamos resolver”.

Minha mãe, sempre prática e proativa, em poucos segundos questionou se me levava ao dentista ou ao joalheiro.

Mulher ao lado de uma janela olhando para baixo
cottonbro/Pexels

Táxi! “Vamos ao joalheiro para serrar a pulseira para não danificar tanto.”

Como assim? E eu? Vai que o joalheiro quebra meus dentes!

Não quebrou. Soldou a pulseira com perfeição. Fiquei de castigo por um mês.

E nunca mais ganhei pulseira de argola!

Sinceramente? Eu nem liguei. Já estava em outra fase.

Colecionei, por modinha, figurinhas de jogadores de times de futebol, trocava na escola, e cansei.

Adolescente, também colecionei embalagens de bombons. Bilhetinhos de amor. Papel de bala e até chiclete que o namorado mastigou colecionei. Cansei.

Adulta, colecionei sonhos, expectativas impossíveis. Cansei.

Colecionei dores emocionais e físicas por falta de alongamento e por exercícios sem disciplina. Cansei.

Não coleciono mais coisas. Compartilho. Verdades e bons sentimentos.

A pasta da coleção de bombons da minha filha Luísa? Ainda está no meu escritório. Bem lembrado, vou doar.

Você também pode gostar

Nossa alma está mais conectada ao corpo quando a mente vibra em desapego.

Quero vibrar, aquietar, aqui, estar, quero só mente, desapegar.

Abraços acessíveis

Sobre o autor

Marisa Pretti

Amigo leitor...

Caro leitor...

Querido leitor...

Prefiro chamar você de Passageiro leitor.

Afinal, você está aqui de passagem como eu. Caminhando nesta Terra cheia de buracos e tanta água que haja braços fortes e pernas ligeiras para não se afogar.

Viver, a começar pelo ato de nascer, é para quem tem pacto fechado com a teimosia. O ar inflando os pulmões e o primeiro choro para que ninguém se engane: não estamos aqui só para sorrir, mas principalmente. Sim!

Sou mãe por vocação. Atriz por formação. Entusiasta por opção. Audiodescritora por paixão e profissão desde 2010.

Minha profissão, em uma breve descrição, se resume em traduzir imagens em palavras com o maior detalhamento possível para a pessoa com deficiência visual. Um recurso acessível também para idosos, disléxicos, pessoas com deficiência intelectual e para quem mais sentir necessidade dessa ferramenta assistiva. Simples e complicado assim. Trabalho com filmes, espetáculos de dança, teatro, vídeos, suportes empresariais, e o maior desafio foi levar acessibilidade visual ao Carnaval paulistano, desde 2017.

O mundo é visual, estímulos visuais são constantes! Por meio da audiodescrição qualquer produto pode ser traduzido em palavras.

Trabalhar com inclusão é estar atento ao outro, é ser um facilitador e igualar oportunidades.

Provavelmente foi esse gosto pelas letras encadeadas, mastigadas e saboreadas na língua como um demorado beijo que me trouxe até aqui.

Pretendo contribuir com minhas vivências e reflexões sem pretensão alguma, apenas para compartilhar alguns saberes. Uma leitura leve, um livre pensar, mas nem por isso descompromissado com a sua inteligência.

E porque creio na humanidade, na diversidade e na inclusão aceitei colaborar com o #EuSemFronteiras.

Abraços acessíveis!

OBRIGADA.

Email: pretti.marisa@gmail.com
Facebook: marisa.pretti
Instagram: @asmeninasdosolhos
Site: asmeninasdosolhos.com.br
LinkedIn: As Meninas Dos Olhos Marisa Pretti