Convivendo

Sobreviventes da Felicidade

Menina e menino brancos brincando de bicicleta num campo.
Prometeus / 123rf

Vivi minha infância em Campinas, SP, na década de 1960. Pensando em tudo o que é preciso fazer neste século 21 para se conseguir sobreviver matando um leão por dia, posso afirmar que eu e mais milhões de pessoas daqueles bons tempos — mesmo sem qualquer conotação de saudosismo — podemos ser chamados de “sobreviventes”.

Viajava de carro com meus irmãos todos soltos no banco de trás, e o caçulinha na frente com papai, sem cadeirinhas, cintos de segurança, airbag, muito menos GPS ou computador de bordo. Carro não tinha sequer “pisca-alerta” ou seta (sinal de dobrar era feito com o braço para fora!). Também saíamos de bicicleta de um bairro para outro sem capacete, joelheiras ou cotoveleiras. Eu e a molecada do Taquaral nos divertíamos esperando na esquina da Lotário Novaes que as enormes “jamantas” (como eram chamadas as carretas da época) atingissem o cruzamento da rua com a Azarias de Melo para deslizarmos com nossos carrinhos de “rolimã” por baixo destas, que subiam lentamente, gemendo ao peso de suas cargas. E ninguém jamais foi esmagado por uma carreta ao passar correndo entre suas rodas. É claro que nossos pais nunca souberam disso, pois fora da escola ficávamos o dia todo brincando na rua. Eles nunca sabiam exatamente onde estávamos, mas nem se incomodavam pois sabiam que não estávamos em perigo. Tudo era chamado de “arte” da criançada!

E bota “arte” nisso! Eu e minha turma pulávamos o muro do Liceu N.S. Auxiliadora para roubar manga, e o combinado era encher os bolsos e correr para o muro antes que algum padre desse o alarme e o zelador do pomar chegasse com sua espingarda de sal, atirando pra valer. Fora alguns inchaços e “vermelhões” disfarçados com calças compridas por alguns dias, nossos pais nem ficavam sabendo e ninguém ia parar em delegacia por denúncia de uso de arma contra crianças.

Voltávamos do açougue com a carne embrulhada no jornal, que nem vitrine tinha e onde moscas passeavam livremente. Os vidros de remédio não tinham lacre, as garrafas de refrigerante não possuíam nenhuma tampinha especial, muito menos rótulos detalhados ou validade especificada. A água consumida era a da torneira mesmo, pois nem havia água engarrafada com tanta água boa de graça! Na escola, uma mesma canequinha de alumínio ficava no bebedouro do corredor, usada por todo mundo.

Menina negra sorrindo e com as mãos no cabelo.
Eye for Ebony / Unsplash

Nadávamos pelados no córrego do fim da Lotário Novaes, onde desaguava o esgoto da rua que dava na “valeta” que separava o Taquaral do Cambuí. Tinha até cocô boiando por cima de nossas cabeças, e ninguém nunca foi parar no hospital por causa de esquistossomose, hepatite ou febre tifoide. Estávamos constantemente pegando lagartixas, minhocas e larvas no quintal e ninguém se preocupava com doenças. O comum era tomar, de vez em quando, “remédio pra lombriga”.

Recebíamos atendimento médico do IAPB (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários) — pelo Banco do Brasil, onde papai trabalhava, que depois foi integrado aos outros e virou INAMPS (já que não existia plano de saúde). Mas a gente só ia lá acompanhando os “velhos”, pois criança era “forte pra burro” mesmo sem nunca ter ouvido falar em “anabolizante”: nossa saúde de ferro era cuidada com Biotônico Fontoura, óleo de fígado de bacalhau ou óleo de rícino (que gosto horrível!). Braço quebrado era rotina à qual ninguém dava importância. Dente mole caia no tapa, dado por meu irmão na manga que eu estava chupando, e nem adiantava “dar parte”, que mãe da gente tinha mais o que fazer do que ficar dando trela pra briga de criança.

Nosso primo Maurício, principal companheiro de “artes” — e sempre o mentor das mais terríveis — era gordinho, como de vez em quando tinha um ou outro na turma, mas ninguém sofria “bullying” por qualquer colega de escola. No máximo tinha as rixas da turma do Taquaral contra a turma do Guanabara ou do “Fura-zóio”, e quando éramos cercados no caminho por estes, a humilhação era ter que pular muro da casa dos outros para buscar nossos bonés lançados no jardim das casas pelos arruaceiros. Ninguém voltava espancado ou ferido pra casa. Até as brigas eram com horário combinado entre rivais para depois da aula. Professor, esse sim, tinha autoridade e punia mesmo. Mas era por não sabermos a lição, nunca por indisciplina! E ai de nós se o pai soubesse que tínhamos levado reguada de professor: ainda apanhava em casa!

No caminho da escola, a gente se enchia de doce comprado com restinho juntado das suadas mesadinhas de fim de semana ou de material catado e vendido no ferro-velho pra “aumentar a renda”. O lanche era muito pão doce recheado de Doriana e ninguém tinha sobretaxa de colesterol. Nada de “balada” nem álcool (até cerveja era coisa de adulto mesmo!). A mesada era apenas o custo da entrada da matinê do domingo (e isso se não se faltasse à missa da manhã na capela do Liceu, que a gente assistia lá no fundinho pra não ter que escutar o “esfrega” do padre no sermão!

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Uma vez por mês tinha a confissão obrigatória… E de ter que encarar um professor (que era padre) no confessionário do colégio… (Ai!). O comecinho decorado de sempre: “Padre, fiz coisa feia!”. E ele: “Quantas vezes?”. E eu: “Ah, não contei, padre!”. O berro do padre no confessionário, que a igreja lotada toda ouvia: “Você tá viciado, menino!”. E a volta ao lugar sob os olhares de todos, com a penitência de 300 aves-marias, 150 pais-nossos e o rosto corado de vergonha! O “pecado mortal” que não se confessava nem ao padre era roubar um cigarro do maço do pai (que era surra na certa!) e fumar no meio do mato, lá no fundo dos enormes quintais da época. E sozinho, ainda, só pra sentir que já era homem!

Escola boa mesmo — que “puxava” pelo aluno — era a pública. Quem não se dava bem tinha que passar as férias estudando pra fazer “segunda-época”. Terror de aluno era chegar atrasado, mastigar chiclete e ser apanhado colando na prova: levar puxão de orelha, ter a prova tomada, ir pra diretoria e levar anotação na caderneta, que tinha que voltar assinada pelo pai. Ser apanhado fumando ou perturbar as meninas no recreio podia dar suspensão! O inspetor do colégio era o terror que caçava a gente até se nos visse no cinema em horário de aula. Os bagunceiros e cabuladores de aula assumiam suas culpas: ninguém culpava ninguém e nossos pais ficavam sempre do lado da escola quando éramos punidos. Punido na escola e depois em casa, que ia do castigo às palmadas, que não fazia vizinho nenhum chamar a polícia. E “não” de pai era “não!”, não tinha “talvez”. Escola não tinha SOE nem SOP: “aprontação” era resolvida na diretoria.

Não tínhamos computadores, nem videogame ou YouTube. TV só com programa ao vivo… (sempre os mesmos!). À noite, a garotada ia pro meio da rua e riscava o asfalto com giz para o jogo de “queimada” ou “bocha” com bastão e lata de óleo no círculo riscado com o giz ou o carvão. Depois era jogo de roda, pega-pega e esconde-esconde até com nossos cachorros. Quando se “aprontava” muito, o castigo era não sair pra brincar na rua e o jeito era jogar “sete-marias” com saquinhos de areia, “escravos-de-Jó” com caixinha de fósforo ou bola de gude no quintal. Era uma entra-e-sai o dia todo uns nas casas dos outros, sem tocar campainha nem avisar (até porque telefone era luxo só de “gente bem”, que pagava uma fortuna pra ter; esperava 20 anos para instalarem e só era usado pra falar com namorada e passar trote, pois não havia cobrança por pulso). Nas noites de calor, portas e janelas dormiam abertas. Não havia grades e nunca se ouviu notícia de ladrão.

Menino negro de óculos sorrindo.
frank mckenna / Unsplash

Brinquedo tinha dia certo pra ganhar: só em aniversário e no Natal. Nada de colocar no carrinho a cada ida ao supermercado. Até porque só tinha o mercadinho da esquina, onde eu ia comprar o cigarro do papai. Criança não ia pra psicólogo (que acho que nem tinha!) por problema de comportamento, nem por trauma por ouvir tanto “não”. Pais também não os procuravam para resolver problemas de culpa na educação. Responsabilidade ou encaminhamento na vida era considerado obrigação, não caso de mérito que merecesse divulgação em noticiário de televisão. Se você — tanto quanto eu — viveu isso tudo, parabéns! Você é um sobrevivente da felicidade!

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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