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O Gambito da Rainha: 7 coisas que podemos aprender com a série

Mulher ruiva jogando xadrez.
Reprodução / Netflix
Escrito por Eu Sem Fronteiras

“O Gambito da Rainha” é o nome de uma minissérie produzida pela Netflix, a mais popular até o momento, a partir de um livro homônimo, escrito por Walter Trevis em 1983. Com sete episódios de 50 minutos de duração, conhecemos a história de Elisabeth Harmon, uma jovem que cresceu em um orfanato e tornou-se prodígio do xadrez.

O que poderia ser uma história tediosa revela-se, na verdade, uma trama envolvente e que aborda inúmeros temas que merecem mais atenção na sociedade. A partir da vida fictícia da enxadrista, conhecemos um pouco mais sobre a atuação das mulheres em jogos cujos atletas predominantes são homens, sobre o vício em álcool e em tranquilizantes e sobre a influência da presença materna na vida de uma pessoa, entre outros temas.

Há duas questões que não são abordadas pela minissérie ou pelo livro em si, mas que devem ser consideradas antes de continuarmos a entender essa obra e todas as interpretações que ela estimula. As duas questões dizem respeito à forma como Beth Harmon é construída e representada nas telas.

Ainda que Walter Trevis apresente a personagem Beth de maneira compreensiva e empática, o retrato que faz dela continua sendo a visão de um homem sobre uma mulher, mesmo que ela seja uma mulher inventada. Essa questão já é algo relevante sobre o modo como a sociedade desenvolve narrativas sobre mulheres. Será que podemos dizer que “O Gambito da Rainha” é, realmente, a visão de uma mulher sobre o jogo de xadrez? Ou é como um homem imagina que uma mulher pense?

Outro ponto que se destaca na minissérie é a aparência de Beth, que é diferente de como ela se parece no livro. Nas telas, Beth é uma jovem que a todo momento é referenciada como alguém que se tornou linda ao crescer e atraiu os olhares de muitos homens. Na história original, no entanto, ela é descrita como uma pessoa que causa repulsa por onde passa. A partir disso, podemos refletir sobre a necessidade de escolher mulheres que se encaixam em um padrão de beleza para protagonizar produções televisivas.

Ainda que essa discussão seja importante, o foco deste artigo está nas lições que a minissérie debate ao longo do enredo. Então mantenha os questionamentos apresentados anteriormente nos seus pensamentos, mas abra-se para entender, também, quais são as sete lições que essa enxadrista nos traz!

Quem nunca esteve presente

Ao longo de toda a vida de Beth, mesmo antes do orfanato, observamos o abandono paterno em relação à jovem. Seu pai biológico tinha outra família e não queria assumir a responsabilidade de cuidar de Beth, apesar de a mãe dela estar passando por um sério transtorno mental.

Depois de ser adotada, o pai adotivo da jovem sequer fala com ela, como se a jovem não estivesse presente na casa, ou como se fosse um incômodo para ele. Em uma passagem, ele justifica esse comportamento para com Beth dizendo que só a adotou porque a esposa dele sentia falta de ter uma filha, já que a deles havia falecido.

Imagem de um tabuleiro de xadrez e um homem movimentando uma das peças.
Michal Jarmoluk / Pixabay

O único homem que poderia se aproximar de um pai para a enxadrista foi o zelador do orfanato, Sr. Shaibel, que lhe ensinou o xadrez. A relação dos dois não era a mais carinhosa, e as conversas que tinham eram limitadas ao jogo. Ainda assim, ele apoiou Beth no sonho de se tornar uma jogadora reconhecida e importante. E não é isso que um pai faria?

Beth não é uma pessoa melhor ou pior por não ter um pai presente, mas é possível identificar como ela moldou a relação com o zelador a partir dessa ausência. Muitas outras pessoas, infelizmente, crescem lidando com essa ausência, mas ainda podem encontrar o amor, o incentivo e o carinho em outros tipos de relação.

Aquela que partiu cedo demais

Se as figuras paternas que Beth conheceu sempre estiveram ausentes, isso não aconteceu com as figuras maternas que fizeram parte da sua vida. A mãe biológica da enxadrista cometeu suicídio e poderia ter assassinado a filha nesse processo, mas Beth sobreviveu. Porém ela manteve a imagem de uma mãe que não foi mais capaz de cuidar dela e que se envolveu em um trágico acidente.

Como a mãe biológica de Beth aparece poucas vezes ao longo da minissérie, já que faleceu, não é possível dizer com precisão quais motivos a levaram a tirar a própria vida. Porém observamos o momento em que ela tenta pedir ajuda ao pai de Beth, e ele a destrata.

Certamente a decisão que a mãe da enxadrista tomou – de provocar um acidente para morrer e, provavelmente, matar a própria filha – não foi fácil. Foi o meio que ela encontrou para se libertar do que estava sentindo e para impedir que a filha tivesse uma vida miserável ao lado dela.

Embora o suicídio da mãe tenha sido um ponto fundamental na vida de Beth, visto que foi isso que a levou ao orfanato, percebemos que a jovem compreendia o que tinha levado sua genitora a tomar a decisão que culminou no acidente.

A primeira casa

Embora a jovem enxadrista tivesse uma vida antes de ir para o orfanato, a minissérie não apresenta essa fase. Então temos a impressão de que a primeira casa de Beth foi essa instituição. Lá ela cresceu, aprendeu a jogar xadrez e fez uma amizade que durou pelo resto da vida.

Imagem da frente de uma casa com muro coberto por uma folhagem. A porta da casa é pintada de preto e as janelas possuem um beiral na cor branco. Na frente da casa uma bicicleta de modelo vintage.
Free-Photos por Pixabay
Free-Photos / Pixabay

Como nem tudo são flores, entretanto, foi justamente no orfanato que Beth entrou em contato com pílulas tranquilizantes, que a tornaram dependente de substâncias. Enquanto ela estava lá, depois de algum tempo as drogas foram proibidas, o que fez com que ela tomasse atitudes moralmente inaceitáveis para obtê-las, mesmo que ainda fosse muito jovem.

A relação de Beth com os tranquilizantes é, de certa forma, o ponto mais negativo da sua vida. O orfanato deveria ter mais responsabilidade sobre as substâncias que entregava às crianças, e isso teria evitado o problema. Mas também foi no orfanato que Beth descobriu o amor e a importância da amizade, como veremos em breve.

A mãe de coração

Ao ser adotada, Beth conheceu uma mulher, Alma, que não parecia a mãe ideal. Pouco preocupada com a menina e ainda traumatizada pela morte da filha biológica, Alma se entregava a vícios.

Assim que ela soube da habilidade da menina para jogar xadrez, transmitiu a impressão de estar mais interessada no dinheiro que Beth ganharia com o esporte. Felizmente, depois de muitas viagens para competir, as duas criaram uma relação amorosa verdadeira e importante.

Assim como o zelador do orfanato, a mãe adotiva de Beth a apoiou no sonho de se tornar enxadrista, mesmo sem entender muito bem como o esporte funcionava. Um ponto negativo dessa relação foi que, a partir da mãe, a jovem começou a ingerir bebidas alcoólicas de maneira descontrolada, o que acarretou problemas posteriores.

Dependência química e decadência

O vício em drogas é uma questão de saúde pública que pode afetar qualquer pessoa. No orfanato, Beth teve o primeiro contato com pílulas tranquilizantes, que a instituição utilizava para que as crianças não gerassem problemas. Porém, seguindo o conselho de uma amiga, Beth alterou o horário de ingestão das pílulas e passou a ter alucinações envolvendo jogos de xadrez.

A partir disso, a enxadrista conseguia estudar os jogos e as jogadas que faria, passando a depender desse instrumento para vencer a cada rodada. O que parecia algo banal e inofensivo, porém, tornou-se um grande problema para Beth quando ela atingiu a adolescência.

Como a mãe adotiva de Beth tomava o mesmo tipo de pílula, a jovem roubava alguns comprimidos para si. Isso piorou a dependência química, visto que o produto estava sempre disponível para ela e frequentemente era misturado com álcool.

Imagem de dois copos com whisky e gelo e um charuto apagado. Eles estão dispostos sobre uma mesa de madeira.
Anncapictures / Pixabay

No decorrer do enredo, observamos como o vício em drogas leva Beth a um processo de decadência, no qual ela é incapaz de sair de casa, manter o local limpo, cumprir os compromissos que aceitou e, claro, de jogar xadrez.

A recuperação da jovem acontece quando ela encontra o apoio de amigos que a acompanharam durante todo o seu crescimento e que a incentivam a largar as drogas e fazer aquilo que ela sempre amou. Ainda assim, é essencial compreender que as pílulas e o álcool poderiam ter acabado com o futuro de uma menina-prodígio.

Bons e velhos amigos

No orfanato, a primeira pessoa com quem Beth faz contato é uma jovem chamada Jolene. Mais velha que as demais, ela parece ser alguém que dá trabalho para os funcionários. É ela quem sugere que Beth altere o horário de ingestão da pílula, para que tenha alucinações, embora tenha alertado sobre o risco de depender desse tipo de produto.

Depois que Beth é adotada, é como se Jolene não fizesse mais parte de sua vida, e, por muitos episódios, ela demora a aparecer novamente. O reencontro acontece quando o Sr. Shaibel falece, e Jolene vai até a casa de Beth avisá-la. Assim elas retomam o relacionamento que tinham quando eram jovens e a amiga da enxadrista a incentiva a continuar jogando, libertando-se do vício em tranquilizantes e em álcool.

Imagem do céu e o por do sol à frente dele três pessoas amigas saltando.
Fancycrave1 / Pixabay

Mas Jolene não é a única amiga de Beth. Ao longo da série, vemos que a jovem atrai a atenção e a admiração de outros jogadores de xadrez. São eles: Townes, Benny e Harry. Embora exista um interesse romântico por parte de alguns deles em Beth, ela não se deixa levar por isso, colocando sempre o xadrez como prioridade.

Porém, nos piores momentos de Beth, foram Benny e Harry quem a ajudaram a se recuperar e a voltar a jogar com qualidade, inclusive treinaram a moça, apresentando-lhe novas técnicas e estilos de jogo. Ainda que o principal assunto deles fosse o xadrez, conseguimos identificar o carinho e a amizade que existem entre cada um.

Dessa maneira, compreendemos que as amizades e os outros tipos de relacionamentos que construímos são uma parte fundamental da construção e da manutenção de quem somos. Se Beth não tivesse amigos e fosse rejeitada por todos, provavelmente ela não teria a chance de vencer a decadência trazida pelo álcool e pelas pílulas.

A mulher em um jogo dominado por homens

No começo do artigo, começamos a refletir sobre como Beth é uma personagem feminina construída por um homem. Ela é apresentada de maneira compreensiva e empática, mas há um ponto que a minissérie deixa de abordar com mais intensidade: o machismo no xadrez.

Como em qualquer esporte dominado por homens, a presença de uma atleta é um incômodo. Os homens não querem passar pela suposta humilhação de perder para uma mulher, podendo se tornar agressivos quando isso acontece.

Na época em que o enredo se passa – na década de 50 –, o machismo era ainda mais acentuado na sociedade, e dificilmente Beth seria tão bem tratada por seus adversários, de quem ela ganhava com facilidade. A mentalidade predominante naquele momento era que as mulheres deveriam ser donas de casa, esposas e mães, e não jogadoras de xadrez melhores que os homens.

Imagem de uma mulher de cabelos loiro e curto. Ela está jogando xadrez e está movimentando uma pedra no tabuleiro.
Press 👍 and ⭐ / Pixabay

É evidente que em alguns momentos “O Gambito da Rainha” dá pinceladas sobre o assunto. As pessoas sempre parecem estar impressionadas por Beth ser uma mulher tão habilidosa, e em muitos pontos a personagem se mostra incomodada com a atenção que a boa aparência dela recebe nas matérias sobre ela como enxadrista.

No livro, mesmo a aparência fora do padrão de beleza de Beth é um dos pontos centrais da maneira como ela é vista por outros personagens. Porém, ao concentrar todo o machismo nessa abordagem, as duas representações da história deixam de explorar uma questão que seria enriquecedora para o enredo e para a sociedade.

Pensar sobre o papel da mulher na sociedade – e nos esportes – não pode se resumir à aparência delas. O machismo se constitui como uma limitação, como algo que pode impedir as mulheres de ocuparem determinados espaços. Não é apenas um incômodo ou uma exaltação ao visual feminino. Como seria a vida de Beth se ela fosse rejeitada por onde passasse? Se os enxadristas reagissem de maneira agressiva às vitórias dela? Pense sobre isso.

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“O Gambito da Rainha” é uma obra de ficção que foi apresentada ao mundo, primeiro, como livro, em 1983, e tornou-se a minissérie mais popular da Netflix em 2020. O enredo traz importantes reflexões sobre temas caros à sociedade, que nos fazem refletir sobre as mulheres nos esportes, a constituição de uma família, a necessidade de ter amigos e os perigos do vício em drogas. Assista aos episódios e tire suas conclusões sobre esses temas!

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