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O PECADO EM ASSUNTO DE FILÓSOFO Com Nilo Deyson Monteiro

Um painel de mosaico que apresenta uma representação artística de Adão e Eva.
©petrkurgan / 123RF

O texto de hoje tem como tema “A ideia de pecado e suas consequências para a posteridade nos mitos de Tântalo e Adão e Eva”.

Amigo leitor, preparei aqui uma pesquisa com referências para você ter uma diversidade de opções para investigar, pesquisar em fontes de grande relevância sobre o tema.

A questão do sofrimento humano sempre foi, na história da humanidade — e poder-se-ia dizer também que na história das religiões —, um incômodo. Lidar com limites não é fácil para quem sempre tenta vencê-los. É diante de questões sobre os limites da condição humana que o ser humano chega ao mito, e do mito parte para uma reflexão mais elaborada e sistematizada.

O presente estudo quer, nesse sentido, fazer uma aproximação entre mitologia grega e reflexão teológica sobre a condição humana. Para tanto, divide-se este artigo em duas seções:

1ª: O mito de Tântalo e a maldição sobre sua descendência, onde se encontrará, conforme a literatura mítica grega, as razões das desgraças que acompanham a descendência de um primeiro homem-deus que comete uma falta.

2ª: O tema das consequências do pecado de Adão e Eva na teologia cristã, partindo da leitura paulina do pecado ou hamartia de Adão e seus efeitos para toda a humanidade.

Uma pintura que representa a expulsão de Adão e Eva do reino dos céus.
Benjamin West / The Everett Collection / Canva

Não é intenção confundir os mitos, como se um pudesse ter sido base para o outro, mas encontrar pontos de convergência entre os dois no que diz respeito à questão da condição humana.

“A mitologia grega, como sabemos, busca dar sentido aos grandes dramas da humanidade. Assim, não é difícil de encontrar nos mitos temas que dizem respeito à condição do homem neste mundo. Dentre os principais temas trabalhados nos mitos estão o sofrimento, a morte, as desgraças que se abatem sobre a humanidade diariamente. Dessa forma, pode-se dizer que o mito busca iluminar a realidade e lhe dar sentido, pois, ao considerar as origens, explica, por exemplo, a condição miserável atual do ser humano” (RICOEUR, 1988).

No mito de Prometeu, por exemplo, pode-se perceber a condição “agraciada” de todos no princípio. Por causa de sua “astúcia”, essa situação é revogada. O ato de uma única pessoa, nesse sentido, causa danos a toda a humanidade, em todos os tempos. Entretanto, no caso do mito de Prometeu, a humanidade herda apenas as consequências de um mau ato, como o sofrimento e a morte. Não há herança de culpa, mas das consequências do ato de Prometeu.

O mito traz quatro personagens principais: Zeus, Prometeu, Epimeteu e Pandora. Hesíodo, poeta grego que escreveu “Teogonia” e “Os trabalhos e os dias”, afirma que Zeus, o todo-poderoso deus dos gregos, havia ocultado o fogo dos seres humanos, para que estes não vivessem no ócio, fazendo em um dia aquilo que deveriam fazer em um ano (HESÍODO, 2008). Prometeu, um titã, filho de Jápeto e Clímene, e irmão de Epímeteu, em um ato de traição, rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos homens mortais. Encolerizado, castiga não apenas Prometeu, mas também os seres humanos:

“Filho de Jápeto, sobre todos hábil em suas tramas, apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhas; grande praga para ti e para os homens vindouros! Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal” (HESÍODO, 2008).

Zeus diz que Prometeu é “hábil em suas tramas”, indicando o significado do próprio nome “Prometeu”, que, como substantivo masculino, significa “astuto”, “previdente”, “prudente”, “o que sabe antes”. O resultado da astúcia de Prometeu será o mal, que virá na forma de uma bela virgem, Pandora, criada a partir da mistura de terra e água e adornada por todos os deuses para que fosse dada como um presente de todos os deuses a Epimeteu, irmão de Prometeu. Hesíodo, em Teogonia, afirma que Epimeteu é “sem-acerto” e “dês do começo, foi uma mal aos homens come-pão” (HESÍODO, 2009). Isso porque, ao receber dos deuses Pandora, Epimeteu logo se apaixona pela virgem. Prometeu havia prevenido Epimeteu de nunca receber presente dos deuses, mas este não pensou no que havia sido dito por seu irmão, aceitando aquela que, alçando a tampa de seu jarro, distribuiu aos seres humanos todos os males que lhe foram dados pelos deuses, sobrando apenas no jarro a “Expectação” ou “Esperança”. Pandora torna-se o símbolo da desgraça (HESÍODO, 2008).

“No mito de Tântalo acontece algo parecido. Também ele quer usar de astúcia para com os deuses. Querendo por à prova a onisciência dos olímpicos, acaba desencadeando uma série de desgraças não apenas para si, mas para todos os seus descendentes. Embora sendo filho de Zeus e Plutó, o rei da Lídia já havia cometido alguns crimes contra os deuses, como: revelar os segredos divinos aos homens; roubar o néctar e a ambrosia, alimento dos deuses que lhes conferia imortalidade; e, a mais grave de todas as hamartiai, oferecer seu próprio filho, Pélops, em um banquete para testar a onisciência dos deuses” (BRANDÃO, 2013).

Escultura que representa um anjo blasfemador.
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Diversos autores clássicos, como Homero, Ésquilo, Eurípedes, Virgílio, Sêneca, Higino, Ovídio etc., exploraram tal mito e fizeram conhecer a desgraça que se abateu sobre os tantálidas (descendentes de Tântalo). A famosa guerra de Tróia, por exemplo, encontra-se nessa trama desgraçada que é a história dos descendentes de Tântalo, como se verá mais adiante.

O escritor latino Sêneca, em sua obra Tiestes, apresenta Tântalo como maldição, quando já no primeiro ato diz:

“Não fiquem imunes os céus de vossas maldades: por que brilham as estrelas no firmamento?… Que venha uma noite profunda, que desapareça do céu o dia. Revira esses Penates, acarretando a eles ódios, matanças, funerais e preenche de Tântalo toda a casa” (SÊNECA, 2008).

Preencher de Tântalo o ambiente significa, preencher do espírito de Tântalo, significando a maldição presente em sua descendência, recordando a desgraça lançada pelos deuses, como veremos a seguir.

A hereditariedade da maldição de Tântalo:

Como já afirmado, dentre os crimes de Tântalo, o principal e mais trágico é o de servir seu próprio filho em um banquete para testar a onisciência dos deuses.

Tântalo era rei da Lídia, casado com Dione e tinha dois filhos: Nióbe e Pélops. Certo dia, Tântalo convida os deuses para um banquete e, para testar a metys, “astúcia”, “sabedoria” dos deuses, sacrifica seu filho, esquartejando-o e servindo-o como alimento. Dando-se conta de que Pélops não se fazia presente no banquete, os olímpicos se detiveram e não provaram a iguaria servida pelo rei. Entretanto, Deméter, deusa da agricultura, preocupada com o sequestro de Perséfone e desatenta por causa da fome, devorará uma espádua de Pélops. Ao perceberem que o alimento à sua frente era o filho de Tântalo, os deuses recompuseram-no e fizeram-no viver novamente (BRANDÃO, 2013). No lugar da espádua de carne devorada por Deméter, Pélops recebe uma espádua de marfim, como afirma Ovídio (2014):

Quando nascera, este ombro fora de cor igual ao direito e de carne. Mais tarde, o corpo foi esquartejado, diz-se, pelas mãos do pai, e os deuses o recompuseram. Acharam todos os pedaços, menos um, entre a garganta e o cimo do braço. No lugar da parte jamais encontrada foi colocada uma peça de marfim. E, feito isto, ficou Pélops completo.

O horror toma conta dos deuses, e estes lançam Tântalo no Tártaro, condenando-o a um suplício eterno de sede e fome. Ficará mergulhado até o pescoço em uma água límpida; acima de sua cabeça, há árvores cheias de frutos. Sempre que sentir sede, a água que lhe está tão próxima da boca escoará, e quando sentir fome e quiser apanhar algum fruto das árvores que estão acima de sua cabeça, os ramos das árvores se moverão para fora de seu alcance. Este é o chamado “suplício de Tântalo”, como afirma Ovídio: “Tu, Tântalo, água alguma logras apanhar, e os frutos, que sobre ti pendem, fogem-te” (2014).

O estudioso da mitologia grega, Junito de Souza Brandão (2013) afirma que:

“O tema mítico de Tântalo, na luta interior contra a vã exaltação, simboliza a elevação e a queda. Seu suplício corre paralelo com sua hamartía: o objeto de seu desejo, a água, os frutos, a liberdade, tudo está diante de seus olhos e infinitamente distante da posse. No fundo, Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido, sempre insaciável, porque está na natureza do ser humano o viver sempre insatisfeito. Quanto mais se avança em direção ao objeto que se deseja, mais este se esquiva e a busca recomeça…

O primeiro a experimentar as consequências dessa hamartia é o próprio Tântalo. Todavia, sua atitude acarretará desgraça para toda a sua descendência. Niobe, sua filha, verá seus catorze filhos, sete homens e sete mulheres, morrerem por causa de seu orgulho diante da deusa Latona, ou Leto, que tivera apenas dois filhos. Diante da afronta, Apolo matará a flechadas os sete filhos homens de Niobe, enquanto caçavam, e Diana, também com suas flechas, tirará a vida das sete filhas (HIGINO, 2009). Já temos, aqui, uma primeira situação de desgraça na família de Tântalo após o castigo do próprio rei da Lídia. Diz-se que Niobe, “desesperada de dor e em prantos, refugiou-se no monte Sípilo, reino de seu pai, onde os deuses a transformaram num rochedo, que, no entanto, continua a derramar lágrimas” (OVÍDIO, 2014; BRANDÃO, 2013).

A pedra "chorona" do Monte Sípilo, na Itália.
Carole Raddato / Flickr

“Pélops, o que fora servido no banquete, também será vítima da maldição dos tantálidas, assim como será amaldiçoado novamente por causa de uma traição de sua parte. Pélops aspirava casar-se com Hipodâmia, que era filha de Enômao, rei de Pisa, na Élida. Mas para alcançar seu desejo, Pélops deveria aceitar o desafio de vencer o rei em uma corrida de carros. O rei possuía os melhores cavalos da região e, por isso, vencia todos os pretendentes de sua filha. Já havia derrotado doze pretendentes, quando Pélops se apresentou. Para poder derrotar Enômao, Pélops contará com a ajuda do cocheiro real, Mírtilo, que concordou em sabotar o carro do rei. No primeiro arranque dos cavalos, o eixo do carro se partiu e Enômao foi arremessado ao solo, sendo despedaçado. Pélops, assim, consegue casar-se com Hipodâmia, mas para não deixar testemunhas de seu crime, lançará Mírtilo ao mar. No entanto, antes de morrer, o cocheiro rogará uma maldição a Pélops. Assim, à maldição de Tântalo, soma-se a maldição de Pélops, fruto de sua traição” (BRANDÃO, 2013).

Da união de Pélops e Hipodâmia nascem Atreu, Tiestes e Crísipo, entre outros. Crísipo fora assassinado por seus irmãos Atreu e Tiestes, e estes fugiram para Micenas, carregando consigo mais um crime (HIGINO, 2009). Com a morte de Euristeu, rei de Micenas, que deixara esta vida sem descendentes, os micênios entregam o trono aos dois irmãos, dando crédito a um oráculo. Então dá-se início a uma disputa sangrenta entre ambos que, mais uma vez, marcará os descendentes de Tântalo.

Conta-se que, visando o trono de Micenas, Atreu, depois de ter encontrado um carneiro de velo de ouro, havia prometido sacrificá-lo a Ártemis, deusa da caça, mas, em vez disso, guarda-o e o tosão de ouro, recolhe num cofre. Sua esposa Aérope, num ato de traição, rouba o tosão de ouro e entrega-o a Tiestes, que propõe a Atreu um desafio para ver quem subiria ao trono de Micenas. Este desafio era o de mostrar ao povo um tosão de ouro. Como não soubesse da traição de sua esposa, Atreu aceita o desafio. Entretanto, orientado por Zeus, Atreu faz uma contraproposta: o rei deveria ser designado não pela apresentação de um tosão de ouro, mas por um ato extraordinário, um prodígio: caso o sol seguisse seu curso normal, o trono seria ocupado por Tiestes, se acontecesse de o sol regressar para leste, Atreu seria o rei. Depois de aceito o desafio, todo o povo passou a observar o céu. O sol, em vez de seguir o seu curso, voltou-se para o nascente, e Atreu, então, assumiu o trono (BRANDÃO, 2013).

“Mais tarde, Atreu saberia da traição de sua esposa com seu irmão, fazendo com que Tiestes abandonasse Micenas. Essa situação iria trazer como consequência uma vingança tão monstruosa que Sêneca, por meio de uma das personagens da obra Tiestes, afirma que até mesmo Tântalo e Pélops se envergonhariam do que iria acontecer” (SÊNECA, 2008).

Fingindo querer reconciliar-se com seu irmão, Atreu convidará Tiestes para retornar a Micenas, prometendo-lhe terras e convidando-o para um banquete em honra aos deuses: “é uma grande alegria ver um irmão. Dá-me esse abraço que tanto espero. Todas as iras sentidas, sejam coisas passadas. Daqui por diante, temos que honrar o sangue e os laços familiares” (SÊNECA, 2008). Entretanto não serão animais os sacrificados, mas os próprios filhos de Tiestes: Tântalo, que carrega o mesmo nome do bisavô, e que seria o primeiro a morrer, e Plístenes.

Sêneca mostra que tudo é muito bem planejado por Atreu: primeiro, oferece terras a Tiestes, que, num primeiro momento, se mostra desconfiado, mas depois, diante da forma como é recebido, acaba acreditando nas boas intenções do irmão; diz ao irmão que ofereceria um sacrifício aos deuses e o convida para um banquete para selar a paz entre os dois; faz prisioneiros os filhos de Tiestes, sem que esse saiba; prepara o altar do sacrifício; amarra as mãos dos meninos com fitas cor de púrpura, utilizadas para sacrifícios; venda-lhes os olhos; prepara o incenso, observando todos os protocolos para o sacrifício:

“O sacerdote é ele mesmo, entre nefastas maldições, com voz cruel, entoa o canto fúnebre. Coloca-se à frente do altar, prepara as vítimas designadas a morrer. Prepara tudo, sem esquecer nenhuma parte do sacrifício… Este ato comoveu a todos… Apenas Atreu se mantém insensível em sua ação, aterrorizando os deuses, que o ameaçam e, sem mais adiar, se coloca junto ao altar… O primeiro posto, não penses que não existe respeito pela família, foi consagrado ao avô: Tântalo é a primeira vítima… Então, este [Atreu] conduz até o altar, com crueldade, Plístenes e o une a seu irmão” (SÊNECA, 2008).

O relato segue, mostrando a crueldade com que Atreu esquarteja os corpos das vítimas, separando seus membros, arrancando-lhes as vísceras, deixando apenas os rostos e as mãos intactas, para que sirvam de prova (SÊNECA, 2008).

Estando tudo pronto, Atreu chama seu irmão para o banquete, preparado com a carne de seus filhos. Sentindo-se lisonjeado com a atitude do irmão, Tiestes pede que seus filhos possam participar de sua felicidade, ouvindo de seu irmão: “Acredita! Os teus filhos estão aqui, no colo de seu pai… tu devoraste teus filhos neste banquete cruel” (SÊNECA, 2008). Aterrorizado, Tiestes invoca a intercessão dos deuses, dizendo: “os deuses vingar-me-ão; meu desejo é que tu estejas em suas mãos, para que te punam” (SÊNECA, 2008). Diante da dor de seu irmão, Atreu sente-se vingado.

A maldição dos descendentes de Tântalo ainda não chegou ao fim. Tiestes terá a sua vingança por meio de seu filho Egisto, fruto de seu relacionamento com sua própria filha, Pelópia, que, um tempo depois, fugiu para Micenas e casou-se com seu próprio tio, Atreu.

Quando Egisto nasceu, fora abandonado por Pelópia. Alguns pastores o encontraram e colocaram-no para mamar numa cabra. Ao saber disso, Atreu manda buscar Egisto e o cria como se fosse seu filho (HIGINO, 2009). Uma vez crescido, o rei de Micenas ordena que Egisto mate Tiestes. Ignorando que este é seu verdadeiro pai, Egisto segue as ordens de Atreu. Em tempo, entretanto, ele descobre quem era o seu autêntico pai, retorna a Micenas e mata seu pai adotivo (BRANDÃO, 2013).

Agamémnon e Menelau: Os filhos de Atreu e a Guerra de Tróia:

Tendo sido morto Atreu por Egisto, seu filho de criação, mas filho legítimo de Tiestes com Pelópia, sobe ao trono de Micenas o filho de Atreu com Aérope: Agamémnon. Foi conhecido na antiguidade por querer controlar os estados circunvizinhos, tornando-se o rei por excelência de Argos, Micenas e da Lacedemônia. Agamémnon era casado com Clitemnestra, filha de Tíndaro e Leda, rei e rainha de Esparta, irmã de Helena por parte de mãe, pois esta era filha de Zeus com Leda.

Soldados troianos no entorno e, no centro, Helena de Troia.
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O mito afirma que muitos eram os pretendentes de Helena, mas, aconselhado por Ulisses, Tíndaro respeitará a decisão de Helena na escolha do noivo e, caso este fosse atacado, todos deveriam socorrê-lo. A filha de Leda escolhe Menelau, irmão de Agamémnon, como seu marido, que, após a morte de Tíndaro, sobe ao Trono de Esparta.

“A maldição dos descendentes de Tântalo, mais uma vez, se fará presente na história dos filhos de Atreu. Em visita a Esparta, o filho de Príamo, rei de Tróia, Páris, também chamado Alexandre, encanta-se com a beleza da rainha e, em seu retorno a Tróia, rapta Helena, levando-a consigo. Diante de tal ofensa, Menelau pede auxílio ao seu irmão, Agamémnon, que convoca os demais reis ligados por juramento a Menelau e monta a grande armada com o objetivo de vingar o rapto de Helena e atacar a cidade de Príamo” (BRANDÃO, 2013).

Mas a empreitada não alcançará sucesso imediato. De início, os presságios foram favoráveis aos atridas (filhos de Atreu). Mas a arrogância de Agamémnon diante de Ártemis, deusa da caça, fará com que a marca dos descendentes de Tântalo se manifeste mais uma vez.

Em Aulis, Agamémnon sai para caçar e, após matar uma corça, afirma que nem mesmo Ártemis poderia ter feito melhor. A deusa encoleriza-se com Agamémnon. Mais uma vez, um tantálida ofende a deusa. O primeiro foi Atreu, que prometeu sacrifício à deusa e recuou; agora, o rei de Micenas, com sua arrogância. Para aplacar a ira da deusa e para obter vitória contra os troianos, Agamémnon deverá sacrificar sua filha Ifigênia. Quando tudo estava preparado, Ártemis se apieda da moça e coloca em seu lugar uma corça, depois de ter feito cair uma escuridão que impedira de se ver a troca, levando a filha do rei para Táurida, para servir-lhe de sacerdotisa (EURIPEDES, 2005; BRANDÃO, 2013).

Ao saber do sacrifício da filha, Clitemnestra tramará uma vingança contra o marido. Entra em cena, novamente, Egisto, que tinha um caso com a esposa de Agamémnon. Mais uma vez, os tantálidas entram em conflito.

O drama da casa dos atridas será contado, dentre tantos escritores, por Ésquilo. Na Orestia, encontraremos a saga dividida em três peças: Agamémnon, Coéforas e Eumênides (ÉSQUILO, 2003). Em Agamémnon, Ésquilo retrata o retorno do rei dos argivos, após a vitória sobre Tróia. Clitemnestra, que não se conformara com o sacrifício de Ifigênia, já havia tramado com Egisto a sua vingança contra o marido, matando-o.

Mas a desgraça não acabará com a morte de Agamémnon. O espírito do rei apareceria em sonho a Clitemnestra, assombrando-a e amaldiçoando-a. Esta deveria ser morta por seu próprio filho, Orestes. Essa trama se encontra na segunda peça da Orestia: Coéforas.

“Orestes, ainda jovem, fora mandado por sua irmã, Electra, para Fócis, onde foi criado como filho por Estrófio, casado com Anaxíbia, irmã de Agamémnon. Chegado à idade adulta, Orestes recebe de Apolo a ordem de vingar o pai, matando sua mãe e Egisto. Chegando a Micenas, passa-se por um enviado de Estrófio para anunciar a morte do filho de Clitemnestra, Orestes, ele mesmo disfarçado. Tal notícia traz conforto a Clitemnestra, que se vê livre da maldição de Agamémnon. Manda avisar Egisto. Este, entrando no palácio, é brutalmente assassinado por Orestes, que, em seguida, para ser fiel ao mandato de Apolo, mata sua mãe” (BRANDÃO, 2013).

Na terceira peça, Eumênides, encontra-se o relato da fuga de Orestes para Atenas por ordem de Apolo. As Erínias, entidades vingadoras, despertadas pelo espírito de Clitemnestra, recriminam a proteção dada por Apolo a Orestes, exigindo que este pague com seu próprio sangue. Desesperado, Orestes abraça-se à efígie da deusa Atena e roga-lhe sua proteção. Atena, ouvindo seu clamor, propõe um julgamento, que será aceito pelas Erínias. No julgamento, há um empate, cabendo à deusa o voto que desempataria. Atena vota a favor de Orestes, libertando-o, assim, da perseguição das Erínias.

A história continua, pois o perdão de Atena livra Orestes apenas da perseguição das entidades vingadoras. Mas aquilo que já fora demonstrado indica o que se havia dito no início da seção. A hamartia de Tântalo inaugura uma cadeia de desgraças que se abaterá sobre sua descendência, gerando uma série de novas hamartiai, que marcaram os que tinham seu sangue, assim como a todos os que se envolveram com os de sua casa.

O tema das consequências do pecado de Adão e Eva na teologia cristã

Aquilo que na primeira seção apresentamos como “desgraça hereditária” tem pontos de contato com a “doutrina do pecado original” da teologia cristã. Trata-se de uma leitura muito próxima da ideia grega de um ato primeiro que causa consequências não apenas para aquele que comete, mas a todos os seus descendentes.

No Antigo Testamento, o tema da falta dos primeiros seres humanos aparece em Gn 3, 1-24. No mito de Adão e Eva, vemos uma mudança de um estado de graça, presente no capítulo 2 de Gênesis, para um estado de desgraça no capítulo terceiro. O autor sagrado verá no pecado dos primeiros pais a causa da atual condição do homem.

Numa representação de sombras, um homem colhendo um fruto numa árvore.
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Mais tarde, este tema será elaborado pelo apóstolo Paulo (Rm 5,12-21), que verá na “hamartia de Adão” a causa primeira de tudo que é “desgraça” na humanidade. O Adão paulino é mais que um ser individual, pois, nele, toda a natureza humana está contida.

Tendo como base o pensamento paulino, Agostinho desenvolverá a sua teologia sobre o “pecado original”. Essa teologia se dará diante da heresia pelagiana, que negava a necessidade do batismo de criança em vista de sua purificação do pecado do primeiro Homem, que teria passado para toda a humanidade. Mas será reelaborado pela teologia moderna, que vê Adão não como sujeito histórico, mas como símbolo da humanidade.

O pecado de Adão e Eva:

O relato do pecado dos primeiros pais se encontra no capítulo terceiro do livro do Gênesis. É sequência do relato da criação contido em Gn 2,4b-25. Nestes dois capítulos, entendemos como uma situação de graça se transforma em uma situação de desgraça para o ser humano. Em Gn 2, temos a criação do primeiro homem (Adam) a partir do pó da terra (adamah) por parte de Deus, soprando-lhe um hálito de vida (Gn 2,7); depois, Deus planta um jardim e confia o cuidado e o cultivo do jardim ao homem, dando-lhe a ordem, porém, de nunca comer da árvore do conhecimento do bem e do mal: “pois, no dia em que dela comeres, morrerás” (Gn 2,17). Dada a ordem, Deus cria a mulher a partir da costela do homem, em tudo semelhante ao homem, pois fora criada a partir de seus ossos e de sua carne (Gn 2,21-23). A criação conhecia um perfeito equilíbrio, a ponto de o livro dizer: “Eles estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn 2, 25).

No capítulo que se segue, temos uma mudança na condição humana presente no capítulo 2. Se, antes, tudo estava em estado de graça original, agora a desgraça se abaterá não apenas sobre os seres humanos, como também sobre toda a criação. O autor sagrado afirma que uma das criaturas, a serpente, animal astuto, serviu de opositora aos planos de Deus. Ela será a própria figura da tentação, quando diz à mulher que não haveria problema algum em comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois o que realmente aconteceria, caso comesse, não seria a morte, mas o ser igual a Deus: “Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,4-5). Diante dessa tentação, a mulher não só come do fruto da árvore proibida, como também o dá a seu marido (Gn 3,6).

O que nos interessa aqui não é apenas o ato cometido ou a desobediência, mas as consequências dessa hamartia. O texto afirma que, logo após terem comido do fruto da árvore, homem e mulher perceberam-se nus, envergonharam-se e fizeram para si vestes com folhas de figueiras (Gn 3,7); esconderam-se, ainda, por que ficaram com “medo” (Gn 3,10) e acusaram um ao outro, fugindo da responsabilidade pelo ato (Gn 3, 12-13). Se antes havia equilíbrio, agora o que há é desequilíbrio na ordem da criação.

O que se segue ao ato de desobediência é uma série de castigos. Primeiro, a serpente é amaldiçoada: “Porque fizeste isso, maldita sejas tu, entre todos os animais domésticos e todos os animais selvagens. Rastejarás sobre teu ventre e comerás pó, todos os dias” (Gn 3,14) Em seguida, temos o castigo imposto à mulher: “multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos. A teu marido irá o teu desejo e ele te dominará” (Gn 3,16). E, por fim, ao homem, Deus diz: “Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste da árvore da qual te ordenei não comer, maldito seja o solo por tua causa! Dele te alimentarás com sofrimento todos os dias de tua vida… no suor do teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo do qual foste tirado. Porque tu és pó, e ao pó hás de voltar” (Gn 3, 17-19).

Temos, dessa forma, uma mudança de situação: da graça para a desgraça, simbolizadas pela nudez, o medo, acusações, sofrimento, angústia, cansaço, quebra da solidariedade entre o homem e a mulher, quebra da solidariedade entre o homem e Deus, o impacto em toda a criação e a consequência maior: a morte. Assim, podemos dizer que o chamado “pecado das origens” irromperá o mal no mundo (LOPEZ, 2006).

Mais tarde, este tema retornará com força no pensamento paulino, em que o apóstolo fará a comparação entre Adão, como origem do pecado e da morte, e Cristo, como quem nos traz a graça e nos salva dessa condição mortal.

O pecado de Adão em Paulo:

Em sua teologia sobre a condição humana, o apóstolo voltará ao primeiro homem de Gênesis para identificar nele o princípio da morte, do sofrimento e do próprio pecado, ao mesmo tempo em que apresenta o Cristo em uma relação antitética a Adão, como salvador do gênero humano por meio da graça. Para Paulo, a morte de Cristo reconcilia o gênero humano com Deus, e essa reconciliação parte, antes de tudo, do próprio Deus:

Deus prova seu amor para conosco pelo fato de que Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Muito mais agora, que já estamos justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Se, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte de seu Filho, quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos mediante sua vida (Rm 5,8-10).

Estes versículos servem como que introdução ao tema que vem em seguida: a queda de Adão e a graça de Cristo. Percebe-se que, nos versículos acima, já se encontra a relação antitética entre graça e pecado. A morte de Cristo se dá “quando ainda éramos pecadores”, significando que tal morte é ato de amor de Deus pela humanidade pecadora; uma vez justificados pelo sangue de Cristo, sinal do amor de Deus, somos “salvos da ira”, ou daquilo que nos separa de uma relação de amizade com Deus; dessa forma, em Cristo, a inimizade com Deus é aniquilada e o ser humano encontra Salvação. Paulo reconhece que a morte de Cristo na Cruz, seu sangue derramado, reconcilia e dá vida nova à humanidade.

Nos versículos que seguem, Paulo deixará mais clara a ação salvífica de Deus no ser humano por meio das antíteses Adão (um só homem) e Cristo (um só homem):

Como o pecado entrou no mundo por um só homem e, por meio do pecado, a morte, assim também a morte passou a toda a humanidade, porque todos pecaram. De fato, antes de ser dada a Lei, já havia pecado no mundo, mas o pecado não pode ser imputado quando não há lei. No entanto, a morte reinou de Adão a Moisés, mesmo sobre os que não pecaram á maneira da transgressão de Adão, o qual é figura daquele que devia vir. Entretanto, o dom da graça não é como a transgressão. Com efeito, se pela transgressão de um só, muitos morreram, muito mais abundou sobre muitos a graça de Deus, concedida na graça de um só homem, Jesus Cristo. No caso do dom, não é como no caso do pecado de um só: enquanto o julgamento de um só é em vista da condenação, o dom da graça a partir de muitas transgressões é em vista da justificação. Com efeito, se pela transgressão de um só, a morte começou a reinar, muito mais reinarão na vida aqueles que recebem, pela mediação de um só, Jesus Cristo, a graça e o dom da justiça. Portanto, como pela transgressão de um só, a condenação se estendeu a todos os seres humanos, assim pelo ato de justiça de um só, estendeu-se a todos a justificação que dá a vida. Com efeito, como, pela desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos. Quanto à Lei, ela interveio para que aumentasse a transgressão. Onde, porém, aumentou o pecado, superabundou a graça. Assim, como o pecado reinou na morte, também a graça reine pela justiça, para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 5,12-21).

Um homem segurando uma maçã e, sobre  o ombro desse homem, uma serpente.
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Para o apóstolo Paulo, Adão não é apenas um sujeito singular, mas um “universal concreto”, pois, por ele, um só homem, o pecado ou desobediência gera implicações que marcam a humanidade inteira (morte, condenação, pecado). Além disso, segundo Paulo, reconhecemos o pecado em suas consequências: “como reinou o pecado na morte…” (Rm 5, 21).

Cristo, por sua vez, apresenta-se também ele como um “universal concreto de salvação”, pois, por meio da graça de Cristo, também ele um só, significada na “obediência”, o ser humano alcança vida eterna, justificação e a própria graça. Segundo Maldamé (2013, p. 57), isso indica que, para o apóstolo dos gentios, a condição humana está marcada universalmente pelo pecado. Assim, diante dessa condição, a natureza humana necessita de salvação.

Todavia, a partir dos textos citados, é possível afirmar que o apóstolo reconhece no pecado de Adão um “pecado original” que é transmitido de geração em geração, como se pode ver na formulação dogmática do “pecado original”? De fato, quando se faz uma análise do texto, não se pode afirmar que já há em Paulo uma doutrina do pecado original como conhecemos. O que se pode afirmar é que as consequências desse pecado se encontram não apenas no ser humano, como na própria criação (Rm 8, 19-22) e que, o que é transmitido, é a morte (Rm 5,12).

A impressão que temos é que Paulo entende o pecado como uma personificação do mal, assim como personifica a Lei, a Carne, a Morte, a Falta, a Graça (MALDAMÉ, 2013; FREDRIKSEN, 2014).

O tema é controverso. O que se pode dizer, com certeza, é que o intuito de Paulo, mais do que tratar do tema do pecado, é mostrar que há uma solução para a condição miserável em que se encontra a humanidade por causa da hamartia de Adão.

A preocupação da carta aos Romanos é enaltecer a universalidade da salvação, razão por que Paulo utiliza a figura do patriarca da humanidade. Deve-se partir dessa perspectiva e, principalmente, não restringir as intenções de Paulo à dimensão moral. Para Paulo, o que mais importa é manifestar a universalidade da salvação e não afiançar uma ideia de salvação dominada pela cosmologia e pela história de seu tempo (MALDAMÉ, 2013).

Entretanto, o conjunto do pensamento paulino nos permite dizer que, para Paulo, na hamartia de Adão se encontra a hamartia da humanidade. Há, nesse sentido, uma solidariedade entre Adão e seus descendentes. Todavia, há solidariedade ainda maior entre a humanidade e Cristo, pois “onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5,20).

A libertação do pecado, que leva o ser humano a permanecer num estado mortal, faz com que esse mesmo ser humano experimente uma vida nova. Em 1Cor 15,21-22, a antítese Adão-Cristo mais uma vez aparece no pensamento paulino: “Com efeito, por um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos serão vivificados”.

O pecado de Adão no pensamento de Agostinho de Hipona:

Sustentado na teologia paulina sobre o peccatum de Adão e suas implicações para a natureza humana, Agostinho irá elaborar sua teologia sobre o que ele chama de “pecado original”.

Não é correto afirmar que o bispo de Hipona se ocupará do tema do pecado de Adão apenas diante da heresia pelagiana, pois já tratara do tema em outras ocasiões, principalmente para refutar a tese maniqueísta de que o mal está integrado à natureza humana, pois fora criada a partir da matéria, que é má. Para Agostinho, o mal é moral, fruto da vontade humana, não natural (COSTA, 2002).

Entretanto, de fato, será diante da heresia pelagiana que Agostinho trabalhará o tema do pecado do primeiro homem com mais afinco. Isso porque surgiu um monge bretão, chamado Pelágio. Ao contrário do que se dizia, principalmente nas igrejas do norte na África, que o batismo se fazia necessário até mesmo para as crianças, pois estas, mesmo sem pecado pessoal, carregavam consigo a mancha do pecado de Adão, Pelágio afirmou que o pecado de Adão trouxe consequências apenas para o próprio Adão, e que a natureza humana já fora criada mortal por Deus. Dessa forma, a morte corpórea não é resultado do mau ato de Adão, e nem Adão é responsável pela morte de toda a humanidade; e, não sendo a morte consequência do pecado do primeiro homem, mas parte da própria existência humana, muito menos o pecado, ou sua marca, seria transmitida de geração em geração a toda humanidade (SESBOÜÉ, 2003).

Para Agostinho, as teses de Pelágio e de seus principais discípulos, Celéstio e Juliano de Eclano, de que a natureza humana permanece tal e qual fora criada por Deus, sem carregar consigo as consequências do pecado dos primeiros pais, vão contra o que o apóstolo Paulo ensina. O bispo de Hipona fundamenta o seu argumento a partir da carta de Paulo aos Romanos, como podemos ver:

“Dizem [os pelagianos] que a criança não batizada não pode ser lesada com a morte, visto que nasce sem pecado. Entretanto, não é o que diz o Apóstolo, o Doutor dos Gentios, por quem Cristo falava: Por um homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado, a morte, e assim passou para todos os homens, no qual todos pecaram” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1991).

Uma cena de um batismo com água.
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Todavia deve-se perceber que o texto utilizado por Agostinho diverge do texto original. O texto original grego de Rm 5,12 diz: “assim, a morte passou a toda a humanidade (a todos os homens), porque todos pecaram”; enquanto a tradução latina que Agostinho tinha em mãos não traz, pela segunda vez, palavra morte, dizendo apenas: “assim, passou para todos os homens, no qual todos pecaram”. Agostinho interpretará que, o que passou para todos os homens não foi a morte, mas o próprio pecado de Adão, no qual todos pecaram, como se dissesse que a humanidade pecadora, peca no pecado de Adão Entretanto, essa interpretação não esta correta, pois temos um problema de tradução: primeiro, o texto utilizado por Agostinho tem uma falha, como se vê; segundo, embora seja um pronome relativo, a expressão de sentido causal “eph’ô” não poderia ter sido traduzida por um pronome relativo “in quo”, relacionando-o com “pecado”, uma vez que, o que Agostinho interpretara como “pecado” (hamartia, substantivo feminino)” era, na verdade, “morte” (Tánatos, substantivo masculino). Assim, deve-se entender: “a morte passou para todos os homens, pelo fato de que todos pecaram”, ou “em que todos pecaram”, ou, ainda, “porque todos pecaram” (SESBOÜÉ, 2003).

Agostinho entende que há uma solidariedade por parte de toda humanidade no pecado de Adão, isso porque considera que em Adão toda a humanidade estava contida: “Todos pecaram pela má vontade daquele homem, porque todos éramos um (omnes ille unus fuerunt), de quem todos trazem o pecado original, de que ele foi voluntariamente culpável” (AGOSTINHO DE HIPONA, 1985).

Embora o texto fundamental para se entender a teologia agostiniana sobre o pecado original seja Rm 5,12, o bispo sustentará a sua tese com base em outros textos da Escritura, como Rm 5,19; ou, ainda, no Salmo 50,7:

Nem no momento de sua concepção nem de seu nascimento as crianças têm vontade de pecar; mas o primeiro homem, no mesmo instante de sua prevaricação voluntária, cometeu um enorme pecado, e por ele a natureza humana contraiu a mancha do pecado original; e isto é o que quis dizer o salmista com toda verdade: “fui concebido na iniquidade” (Sl 50,7) (AGOSTINHO DE HIPONA, 1985).

O que Agostinho está dizendo é: o homem de hoje traz consigo o pecado do primeiro homem, Adão. Por causa disso, é preciso que, pelo batismo, o homem seja lavado não apenas de suas culpas pessoais, mas também, e principalmente da culpa de Adão, o pecado que herdamos por sermos filhos de Adão, o pecado original (AGOSTNHO DE HIPONA, 1998).

A teologia agostiniana encontrará respaldo na maior parte das igrejas de sua época, principalmente entre as latinas, e mesmo posteriormente. A chamada “heresia pelagiana” será condenada em, primeiramente, concílios e sínodos regionais, como o concílio de Cartago, em 418 (DENZINGER, 2013, art. 222-230); o 2º sínodo de Orange, em 529 (DENZINGER, 2013, art. 371-395); para, enfim, em Trento, resgatando as definições desses sínodos e concílios regionais, a doutrina do pecado original ser apresentada por um concílio de abrangência universal como parte integrante da doutrina católica:

“Se alguém afirmar que a prevaricação de Adão prejudicou apenas a ele e não se propagou à sua descendência; que perdeu unicamente para si e não também para nós a santidade e a justiça recebidas de Deus; ou que, maculado pelo pecado da desobediência, transmitiu a todo o gênero humano “apenas a morte” e as penas “do corpo, e não também o pecado, que é a morte da alma”, seja anátema; “pois contradiz o que o Apóstolo disse: “Por um homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, em que todos pecaram”(Rm 5,12). […] Se alguém nega que as crianças devam ser batizadas recém saídas do útero materno, mesmo se nascidas de genitores batizados, ou então sustenta que são batizados para a remissão dos pecados, mas que não herdam de Adão nada do pecado original que seja necessário purificar com o banho da regeneração para conseguir a vida eterna; e, em consequência, para elas a forma do batismo para a remissão dos pecados não deve ser considerada verdadeira, mas falsa, seja anátema” (DENZINGER, 2013, art. 1511-1515).


A questão do pecado de Adão na teologia atual:

O tema do pecado de Adão e de sua hereditariedade fora trabalhado pela teologia, pode-se dizer, desde que Agostinho formulou a doutrina do “pecado original”, transmitido por “geração”. Mesmo não utilizando o termo “geração”, mas “propagação”, o Concílio de Trento confirma a tese agostiniana e tornando-a “dogma de fé”.

Todavia é importante que se considere o fato de que tanto Agostinho, como seus predecessores e os que se utilizaram de seu pensamento para sustentar a ideia de massa damnata acreditavam que o Adão bíblico era um sujeito histórico, o primeiro dos seres humanos e nele estava contida toda a humanidade (LADARIA, 1998).

Com o avanço da ciência exegética, da arqueologia bíblica e as novas descobertas sobre a origem do ser humano e sua evolução, a teologia se viu na necessidade reinterpretar o tema do pecado de Adão sem esvaziar o sentido dogmático, todavia, considerando ao mesmo tempo seu aspecto mítico. Já não se poderia sustentar a ideia de um homem primordial, patriarca da humanidade, a quem se deve a atual condição do ser humano. Por outro lado, não se pode negar que a humanidade inteira goza de solidariedade universal no que diz respeito a sua própria fragilidade. O mal, o sofrimento, o pecado e a morte são realidades universais e individuais. Nesse sentido, Adão deixa de ser visto como sujeito histórico e passa a ser considerado a partir de sua função. Adão passa a ser visto como um símbolo da mediação entre Deus e a humanidade. Deus deseja que o ser humano se torne cada vez mais sua “imagem” a partir da própria condição de “humano”. Em vez disso, o homem afasta de si essa graça com um “não” a Deus, dando origem à história do pecado (DE LA PEÑA, 1991).

Afasta-se, portanto, do personagem “Adão” o seu sentido histórico, compreendendo-o como sujeito simbólico. O pecado de Adão é pecado da Humanidade, de todos e de cada um, sustentado no livre-arbítrio. Como afirma Sesboüé (2003):

A narrativa da criação e da falta de Adão tem por função desdobrar a origem do mal em relação ao bem. Exprime, na linguagem religiosa do mito e, portanto, do símbolo, um acontecimento de liberdade ‘original’, a passagem do homem inocente, mas falível, ao homem pecador. O limite humano ligado ao estado de criatura foi vivido como uma proibição e provocou uma revolta.

Assim, a originalidade do pecado não está em uma figura histórica, mas no que a figura mítica “Adão” representa: a condição limitada do ser humano enquanto criatura, que deseja algo mais, que não pertence à sua realidade e, por isso, livremente, revolta-se. Por isso, o pecado não pode ser entendido apenas como pessoal ou individual, mas universal ou social. Há, portanto, uma solidariedade universal de todos os seres humanos, de todos os tempos, em sua condição limitada de criatura. De la Peña (1991) afirma:

“Esta solidariedade interpessoal no pecado implica uma sorte de reciprocidade: sou sujeito passivo e ativo do mesmo e como não posso responsabilizar nem a Deus nem à natureza humana a origem de seu poder dinâmico, tenho que pensar no fator humano como elemento ativador do processo (pecado “originante”). Como resultado de tal fator, se frustrou a função mediadora da graça, prevista por Deus em primeira instância e exigida por minha sociabilidade constitutiva, e se abriu uma brecha entre Deus e o homem que este, por si só, não pode reparar, senão apenas ampliar (pecado originado).

Desta forma, compreende-se que não há hereditariedade, mas solidariedade no pecado. O “pecado pessoal” pressupõe e, ao mesmo tempo, atualiza o pecado “originado” e “originante” que se faz perceber na condição pecadora do ser humano, fruto de sua liberdade. Percebe-se, dessa forma, que a doutrina do pecado original mostra a tensão que há entre “destino prévio” e “responsabilidade pessoal” que se encontra na carta aos Romanos e que “não é senão o reflexo da tensão ser social–ser pessoal que define e constitui o homem, e ao que a antropologia atual é sumamente sensível” (DE LA PEÑA, 1991)

Ainda, na teologia atual, destaca-se mais os efeitos da graça de Cristo diante do pecado original. Como afirma Ladaria, “não podemos considerar a doutrina do pecado original algo “anterior” à cristologia e à soteriologia… Somente com relação à salvação de Jesus tem sentido perguntar-nos do que Cristo nos liberta” (LADARIA, 1998). Considera-se que, ao contrário do que se dizia na teologia agostiniana, a cabeça da humanidade não é Adão, mas Cristo. A solidariedade primeira da humanidade não é com o homem decaído, mas com Cristo. Por isso “todos são chamados a ser um em Jesus e a cooperar na realização desse desígnio” (LADARIA, 1998). Esta solidariedade é também universal, pois “toda a humanidade foi reconciliada com Deus por meio de Cristo, não somente os pecadores individualmente” (LADARIA, 1998)


Conclusão:

Após essa reflexão sobre os mitos de Tântalo e de Adão e Eva e suas consequências, podemos perceber que o tema da condição humana é comum nas “literaturas míticas”. Neste artigo, optamos por esses dois mitos, mas se poderia ter tratado de diversos, pois toda religião possui um mito fundante, que fala de seus deuses, da condição humana e de seu futuro na terra. A proposta, desde o início, não era a de confundir os mitos, no sentido de querer encontrar em um o outro, mas de encontrar pontos de convergência e mesmo de divergência, possibilitando, assim o diálogo. Por isso, neste diálogo, optamos ainda por trabalhar o discurso religioso a partir da antropologia, visto que “se tudo o que é humano interessa à literatura, o mesmo acontece com relação ao domínio religioso do homem” (MANZATTO, 1994).

Nesse sentido, a teologia dos gregos buscou no mito de Tântalo, mas não apenas nele, como se viu logo no início desse artigo, situações que explicassem não apenas o sofrimento, mas também a ideia de maldição que perpassa entre as gerações, identificando uma solidariedade natural entre as gerações no sofrimento.

O mito de Adão e Eva também foi, para a teologia cristã, uma referência para se trabalhar as questões do mal, do sofrimento e da morte presentes na realidade humana. O mito quis simbolizar o descontentamento do homem de ser o que ele realmente é, dando origem a uma série de males e desequilíbrios em suas relações com Deus, com a natureza e entre si. O chamado “pecado de Adão” ou “pecado original” acaba identificando uma solidariedade existente entre todos os seres humanos de sua condição limitada de criatura, causando revolta. Viver na graça, nesse sentido, é viver plenamente a sua humanidade, reconhecendo-se criatura em diálogo com o criador. A “desgraça”, por sua vez, é desordem das relações que nos impedem de viver a plenitude do “ser” humano, buscando “ser” outra coisa. A graça de Cristo, nesse sentido, é o que resgata o equilíbrio das relações entre Deus e o ser humano, entre a comunidade humana e entre os homens e toda a criação, pois, em Cristo, “aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Ef 1,19).

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Enfim, espero poder ter ajudado ao amigo leitor na compreensão sobre um tema tão importante no campo do conhecimento filosófico.

Sobre o autor

Nilo Deyson Monteiro Pessanha

Sou filósofo, escritor, poeta, colunista e palestrante.
Meus trabalhos culturais estão publicados em diversas plataformas. Tenho obras e livros publicados.

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Sou uma incógnita que deve ser lida com atenção e talvez somente outras gerações decifrem meu espírito artístico. Sou muitos em mim e todos se assentam à mesa comigo. Posso não ser uma janela aberta para o mundo, mas certamente sou um pequeno telescópio sobre o oceano do social.

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