Existe algo curioso, quase silencioso, no ofício de quem escolhe trabalhar com cuidado, acolhimento e transformação. De quem decide ouvir o outro, sustentar espaços, orientar caminhos e acolher dores.
É um paradoxo sutil, mas absolutamente real: esquecer-se de si exatamente no momento em que se dedica ao outro.
A rotina de quem atua no desenvolvimento humano é muitas vezes uma contradição em movimento. No discurso estão presentes palavras que sustentam a vida: autocuidado, presença, escuta, pausa, equilíbrio. Mas, no cotidiano, a prática nem sempre acompanha aquilo que a boca pronuncia e que o coração reconhece como verdade.
Não acontece por negligência ou por desatenção, mas porque é muito fácil deslizar para um lugar onde a própria escuta desaparece. E talvez o mais importante seja perceber que esse movimento não ocorre abruptamente. Ele não chega batendo à porta nem invade a casa de repente. Ele se infiltra pelas frestas, pelos pequenos esquecimentos, pelos sutis “hoje não dá”. Pela falsa ideia de que é só mais uma semana intensa, mais um ciclo exigente, e depois “eu volto para mim”.
Mas o retorno não chega. Ou chega tarde demais, ou chega quebrado.
É como se, aos poucos, a prática de escuta fosse direcionada exclusivamente ao outro, enquanto o espaço interno do terapeuta se reduz silenciosamente. Isso não acontece por falta de técnica, de formação ou de consciência. Acontece justamente por ser o ponto cego do próprio ofício.
Ninguém acende uma vela sem consumir algo de si nesse processo. A diferença é que algumas pessoas percebem quando o pavio está curto, enquanto outras seguem queimando até não restar nada.
Há ainda um detalhe importante que não pode ser ignorado: o campo percebe, o cliente sente. Pode não nomear, pode não compreender exatamente, mas sente. Porque presença não pode ser improvisada.
Existe uma sustentação invisível no trabalho terapêutico que não vem de currículo, de especialização ou de horas contabilizadas de atendimento. Vem do que você faz por você mesmo, nos momentos em que ninguém está olhando.
O terapeuta que não se cuida, não se escuta, não se observa, passa a operar, sem perceber, em um campo onde há mais discurso que verdade. E não há intervenção técnica capaz de sustentar essa condição por muito tempo.
Isso não envolve desempenho ou performance espiritualizada, mas honestidade. É lembrar que, antes de ser quem cuida, você é alguém que sente, que também adoece, se confunde, precisa parar, olhar para dentro e se sustentar.
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Não há trabalho que perdure ou missão que se mantenha se quem os realiza não encontra formas saudáveis de receber o mesmo cuidado que oferece.
Cuidar de si não é recompensa por um bom trabalho, é parte essencial dele. Quem esquece disso, cedo ou tarde, paga uma conta cara.
Quem cuida também precisa, acima de tudo, lembrar-se de que existe. Existir não é só atender ao outro. É incluir a si no cuidado que se oferece ao mundo.