Nos últimos anos, as formações em terapias complementares se multiplicaram. Cursos de psicanálise, bioenergética, Reiki, Kundalini, constelações, entre tantos outros, atraem pessoas em busca de conhecimento, novas profissões ou até respostas pessoais. O fenômeno é positivo, pois amplia o acesso a práticas de cuidado. Mas há uma questão que precisa ser encarada de frente: muitos concluem formações sem nunca terem vivido, de fato, aquilo que se propõem a oferecer.
É comum encontrar psicanalistas que nunca passaram por análise, reikianos que nunca receberam uma aplicação, terapeutas de Kundalini que evitam as vivências durante a própria formação. Esse comportamento revela uma contradição difícil de ignorar. Porque, sem se deixar atravessar pela experiência, a pessoa permanece apenas no campo da teoria. E teoria, por mais fascinante que seja, não transforma ninguém em terapeuta.
O cuidado exige prática vivida. Quando alguém recusa esse contato, a relação com a técnica se torna estéril. O que resta é repetir conceitos, sem compreender a profundidade do processo. É como tentar ensinar natação sem nunca ter entrado na água. O discurso pode soar convincente, mas carece de enraizamento.
Formar-se em qualquer abordagem terapêutica não é apenas acumular conhecimento. É também aceitar o desconforto de se colocar no lugar de cliente, de permitir que outros toquem feridas, de se expor às próprias contradições. Essa travessia constrói maturidade. É nela que o terapeuta aprende a respeitar limites, a reconhecer fragilidades e a cultivar humildade. Sem isso, o risco é atuar como repetidor de técnicas, e não como cuidador consciente.
Recusar vivências durante a formação pode até parecer um detalhe, mas revela algo maior. Se uma pessoa evita a experiência em si, como poderá oferecer esse mesmo caminho com segurança a outros? Como sustentará um campo que ela mesma nunca explorou? O terapeuta que se limita à teoria cria uma distância entre o que fala e o que pratica. Essa distância mina a confiança, a qual é a base de qualquer relação terapêutica.
Viver o processo é também um exercício de ética. Quem passa pela experiência entende que cada prática tem impacto emocional, físico e simbólico. Percebe que não se trata de aplicar protocolos de forma automática. Aprende que o cuidado envolve escuta, presença e responsabilidade. E só quem atravessa isso sabe reconhecer quando é hora de avançar, quando é hora de pausar e quando é hora de encaminhar.
A postura de evitar vivências pode nascer do medo. Medo de acessar dores próprias, medo de perder o controle, medo de ser visto em vulnerabilidade. Mas é justamente esse mergulho que oferece profundidade à atuação terapêutica. Fugir dele é escolher permanecer em um lugar raso, onde o certificado vale mais do que a experiência.
Ser terapeuta não é um título. É uma prática que se renova a cada sessão, em cada escuta, em cada limite reconhecido. Não se aprende apenas em apostilas ou videoaulas. Se constrói na relação com o outro e, antes disso, na relação consigo mesmo. Quem se forma mas não vive o processo, permanece como estudante. E não há problema algum em ser estudante. O problema é se apresentar como terapeuta sem ter atravessado o caminho que pretende oferecer.
Essa incoerência gera consequências sérias. Os clientes percebem quando a fala não tem lastro. Sentem quando a presença é superficial, quando as orientações soam decoradas. O cuidado perde força. A confiança se quebra. E, em casos mais graves, pessoas vulneráveis podem sair ainda mais fragilizadas de um encontro terapêutico.
A responsabilidade, portanto, começa na formação. Aceitar cada vivência, ainda que desconfortável, é parte do aprendizado. É nesse espaço que se aprende a lidar com resistências, medos e dores que também estarão presentes nos futuros clientes. Fugir disso não protege, apenas adia a confrontação. E, quando a confrontação vier, será durante um atendimento, colocando outra pessoa em risco.
O caminho da terapia não é confortável. Envolve expor-se, rever crenças, reconhecer contradições, olhar para fragilidades. Mas é exatamente por isso que ele transforma. E só quem atravessa esse campo pode se oferecer, com seriedade, para caminhar junto com outro ser humano.
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Se você fez uma formação e nunca se permitiu viver a prática, talvez seja a hora de se perguntar: estou preparado para cuidar de alguém? Ou apenas acumulei informações? Essa reflexão não diminui ninguém. Pelo contrário, pode abrir a chance de escolher com mais clareza se o caminho terapêutico é de fato o seu.
Não basta estudar. É preciso se deixar atravessar. É nesse atravessamento que nasce o terapeuta. Sem ele, resta apenas um certificado na parede.