Tem músicas que a gente evita. Canções que marcaram uma época, um amor, um tombo. Às vezes foi o som que tocava no carro antes de um acidente, às vezes é a voz que embalava alguém que já se foi. Há músicas que ficaram presas em uma lembrança dolorida, como se tivessem virado cápsulas do tempo onde a dor ainda mora.
Por isso, a gente muda de estação, pula a faixa, inventa outro som. Fingimos que esquecemos. Mas as músicas guardam o que a memória não deu conta de elaborar. E um dia, sem planejar, elas voltam. No rádio de um carro, no fundo de um vídeo, num café qualquer. E o susto vem primeiro. Depois, se há espaço, vem algo mais suave: a leveza de perceber que já não dói.
Ouvir de novo o que um dia foi impossível é como visitar uma antiga casa interior. A mesma melodia está lá, mas quem escuta já não é o mesmo. Aquela dor não tem mais o mesmo peso, o tempo trabalhou em silêncio, e o que antes era ferida agora virou uma cicatriz bem pequenininha, quase que imperceptível. É nesse instante que a música volta a ser só música.
Há algo de profundamente libertador nisso. Quando conseguimos escutar sem medo o que um dia machucou, é sinal de que deixamos de ser reféns da lembrança. A canção, antes associada a um evento, se separa da história e volta a respirar. E nós respiramos com ela.
Reouvir é também um jeito de reconciliar-se com o passado… para reconhecê-lo sem precisar revivê-lo. A dor perde o papel principal, o tempo entra em cena, e a música se torna apenas uma música, não mais uma ameaça. Há canções que nos mostram, sem palavras, que a vida seguiu.
A leveza de ouvir novamente o que doeu vem do simples fato de que o coração amadureceu. Ele ainda lembra, mas não se confunde mais com o que aconteceu. A lembrança continua existindo, mas sem a necessidade de defesa. E esse é um dos sinais mais bonitos de cura: quando não precisamos apagar nada para seguir.
Música tem esse poder de costurar o invisível. Ela atravessa os anos, passa pelos silêncios, pelos novos começos, e chega até nós com o mesmo som, mas outro sentido. E, de repente, aquilo que fez parte da trilha de um fim pode se tornar companhia num recomeço.
Ouvir com leveza é perceber que a vida não apaga, ela transforma. Que o que antes fazia chorar hoje pode apenas ser ouvida.
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Algumas canções nos lembram o quanto fomos frágeis. Outras, o quanto crescemos. Todas, quando revisitadas, nos ensinam algo sobre o tempo.
E talvez essa seja a beleza escondida nesse gesto pequeno: quando voltamos a ouvir, não é a vida dizendo, sem pressa, seguimos em frente.
