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A bruxaria no Brasil

Mulheres segurando um livro de bruxaria.
Sierra Koder / Unsplash
Escrito por Eu Sem Fronteiras

Quando você ouve a palavra “bruxaria”, quais são as primeiras imagens que vêm a sua mente? Aposto que gatos pretos, senhoras narigudas encurvadas sobre um caldeirão, poções mágicas e vários outros elementos ligados ao sobrenatural.

A realidade é que o termo bruxaria tem três significados principais. Segundo o historiador Jeffrey B. Russel, ele pode ser usado para designar práticas de curandeirismo, de magia ou da religião pagã conhecida como wicca. Em qualquer um dos casos, sabemos que a “bruxaria” não é algo que surgiu recentemente. Na verdade, ela remonta à Antiguidade.

Desde as primeiras sociedades organizadas, sempre existiram pessoas com conhecimentos que destoavam das crenças religiosas tradicionais, como as mulheres consideradas “sábias” por dominar, por exemplo, o uso de ervas para combater doenças ou o conhecimento de como fazer um parto. Essa diferença, porém, se tornou inaceitável durante a Idade Média, quando as transformações sociais causadas pelo início da Modernidade levaram a uma extensa lista de tragédias: fome, guerra, violência, entre outras. Tentando encontrar um motivo para tamanha desgraça, a solução foi culpar as práticas incompreendidas dessas mulheres – as “bruxas”. Tudo que dava errado era resultado da feitiçaria.

Esse pensamento foi muito impulsionado pelo cristianismo, em especial o Tribunal da Inquisição e a caça às bruxas, responsáveis por combater a heresia e fortalecer a fé católica. O famoso Santo Agostinho foi um dos responsáveis por associar a bruxaria ao diabólico. No século XIV, o papa Inocêncio 8° reconheceu oficialmente a existência de bruxas e a necessidade de persegui-las – o mesmo valeu para os gatos pretos, que seriam bruxas metamorfoseadas.

Foi nesse contexto de intolerância que a bruxaria chegou ao Brasil, onde também sofreu com preconceitos e teve de se reinventar ao longo do tempo, como veremos a seguir.

Como surgiu a bruxaria no Brasil

A temida Inquisição teve o seu auge na Europa. Até então, a religião católica convivia bem com práticas pagãs, mas o surgimento da Reforma Protestante, em meio a tantas mudanças advindas da passagem da Idade Média para o Renascimento, levou a Igreja a combater firmemente quaisquer doutrinas que não estivessem ligadas ao catolicismo.

Da França, o movimento de perseguição e assassinato se expandiu para os impérios português e espanhol. Com as Grandes Navegações, foi praticamente inevitável que esse embate desembarcasse também no Brasil.

Por aqui, já existiam práticas diversas dos povos indígenas, que variavam da crença nos espíritos da natureza até a antropofagia praticada por algumas tribos. Logo de cara, isso não foi visto com bons olhos pelos recém-chegados europeus, que encaravam essas religiões como “coisa do Diabo”.

Silhueta de uma pessoa segurando um cajado.
sonjachnyj / 123RF

Os escravos trazidos do continente africano também somaram tradições à nova colônia, o que levou à mistura de diferentes comportamentos religiosos. Para barrar essa situação, a Igreja Católica trouxe padres para evangelizar os povos nativos e implementou o Tribunal do Santo Ofício – nada mais do que uma Inquisição em território tupiniquim.

Tudo aquilo que era diferente do catolicismo no Brasil foi apelidado de bruxaria – ou, mais tarde, mandinga e macumba. Indígenas que faltavam às missas e escravos que faziam feitiços para se livrar de castigos, por exemplo, eram considerados bruxos. E por ser bruxaria, seus praticantes sofriam perseguição, tortura, interrogatórios e até assassinatos. Como consequência, a bruxaria teve de se reinventar. Continue lendo para saber como isso aconteceu.

Como era a bruxaria antigamente e como é hoje

A bruxaria no Brasil permaneceu sob o véu do medo e da perseguição durante muito tempo. Foi só no século XX que a religião começou a sair do foco do debate público e se tornar uma questão individual. Em 1891, o país virou oficialmente laico, ainda que o catolicismo permaneça com enorme influência na sociedade, na política e na economia brasileira.

Foi essa mudança que permitiu que a bruxaria retornasse à sociedade em busca do seu espaço, embora ainda seja uma crença bastante desvalorizada e, por vezes, banalizada, devido aos estigmas que carregamos até aqui.

Se, antes, as bruxas tinham o conhecimento necessário para preparar medicamentos, fazer partos e cuidar das colheitas, hoje, elas focam o culto à fertilidade e à adoração da natureza. Não cultuam elementos ligados ao cristianismo ou judaísmo, como o diabo, mas creem em uma deusa feminina e extremamente forte. As fases da Lua, os solstícios e os equinócios também são importantes para esses praticantes.

É o que crê a wicca, religião neopagã que se popularizou de 1950 para cá. Ela acredita na magia sobrenatural (sempre voltada para o bem), nos ciclos da vida e nas festividades sazonais. No Brasil, é uma das crenças que mais crescem. Só em 2018, foram contabilizados cerca de 300 mil adeptos.

Cartas de tarot em uma mesa com pedras de runa, plantas e uma vela.
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Ainda assim, a bruxaria continua carregando o peso histórico do preconceito. Em 2014, uma mulher foi linchada até a morte em Guarujá, São Paulo, acusada de sequestro e bruxaria. As religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, também permanecem à margem. Infelizmente, todo o tempo que se passou não foi o suficiente para acabar com o mito da tolerância religiosa no Brasil.

Falando nisso, vamos entender de onde vem tamanha discriminação com a bruxaria?

Por que a bruxaria é tão discriminada?

Por muito tempo, as bruxas ficaram conhecidas como “mulheres sábias”, devido a sua vasta habilidade na cura e nos partos. Porém, com o surgimento da Inquisição, a bruxaria ficou diretamente associada ao demônio e à magia negra.

Essa ligação do feminino à maldade não era algo novo. Na mitologia grega, já existiam personagens como Medeia e Circe, que praticavam o mal por meio de poderes sobrenaturais. Na própria Bíblia, Eva foi a responsável por trazer a ruindade para a Terra após comer o fruto proibido por pura curiosidade.

Dentro de sociedades marcadas por esse tipo de crença, a mulher é vista como impura, maliciosa, inferior e traiçoeira, bem como são os costumes praticados por ela. Durante as sessões de tortura da Inquisição, para se livrar da dor, mulheres confessavam ações horrendas que nunca haviam cometido, como beber sangue humano, sacrificar crianças e abater animais para os próprios rituais.

Sendo assim, a falsa sensação de que a bruxaria está relacionada com o maligno entrou na mentalidade das pessoas. Com os filmes, histórias em quadrinhos e várias outras produções reforçando esse estereótipo na sociedade moderna, fica ainda mais difícil distinguir como as bruxas realmente se comportavam. É comum, por exemplo, vê-las representadas como idosas traiçoeiras ou jovens sedutoras, sempre prontas para lançar um feitiço maquiavélico.

Para fugir dessas ideias irreais sobre a bruxaria, vamos descobrir alguns mitos e verdades sobre o assunto?

Mitos e verdades sobre a bruxaria

Entenda o que os estudiosos têm a dizer sobre as crenças comuns associadas à bruxaria no Brasil e no mundo.

Bruxas sacrificam gatos pretos

Mito. Não existem evidências suficientes para provar que praticantes de feitiçaria abusavam dos gatinhos em seus rituais. Na verdade, acredita-se que esse costume tem a ver com pessoas solitárias e, muitas vezes, perturbadas.

“Gostosuras e travessuras” é uma brincadeira criada pela bruxaria

Verdade. A bruxaria tem suas origens nos povos celtas que, em ocasiões específicas, se fantasiavam e se reuniam ao redor de fogueiras para entrar em contato com ancestrais. Acredita-se que, ainda fantasiados, eles praticavam travessuras de casa em casa em troca de alimento e bebida – uma espécie de oferenda aos seres sobrenaturais.

Menina fantasiada segurando uma cestinha de pedir doces em dia das bruxas.
Paige Cody / Unsplash

Bruxas adoram o demônio

Mito. Como vimos, a associação da feitiçaria ao diabólico foi algo cultuado pelo catolicismo para descredibilizar as práticas pagãs. Na vida real, os praticantes de bruxaria são pessoas com sede de conhecimento e intensa ligação com a natureza.

A religião wicca acredita em vários deuses e deusas

Verdade. Os wiccanos, atuais bruxos e bruxas, adoram deuses ligados aos elementos da natureza, como o fogo, a água, a terra e o ar. É uma religião intimamente ligada ao poder feminino, que preza o cuidado com o natural. Importante ressaltar que qualquer tipo de sacrifício é proibido na wicca.

Bruxos brasileiros famosos

Agora que nós sabemos mais sobre a origem da bruxaria e o processo que ela passou para se reinventar, está na hora de conhecer grandes bruxos e bruxas ao longo da história. Confira!

Maria da Conceição

Em 1798, Maria da Conceição era conhecida por seus talentos com o uso de ervas medicinais para ajudar pessoas doentes em São Paulo. Foi o suficiente para que um padre chamado Luís a acusasse de heresia e bruxaria, o que a levou à execução pública próximo ao Convento de São Bento, no centro da cidade.

Raimundo Antônio de Belém

O indígena Raimundo Antônio de Belém era bastante popular por sua habilidade como pajé e curandeiro. Acusado de faltar às missas católicas na época do Brasil colônia, incentivar outros indígenas a fazerem o mesmo, invocar demônios e entrar em transe, ele foi processado por bruxaria e pacto com o Diabo.

Joana Maria

No Pará, Joana Maria era moradora do engenho de Nossa Senhora de Guadalupe. Ela foi acusada pelo próprio senhor, Gonçalo José da Costa, de envenenar outra moradora, a indígena Felipa. Joana confessou ter feito o uso de raízes de cipó-pucão para acalmar o coração do senhor e evitar os pesados castigos físicos que recebia dele, bem como ter colocado as ervas na comida de Felipa para impedir que ela tivesse ódio.

Até ser presa, a escrava ficou por quase um mês amarrada em um tronco. Por causa disso, foi tratada com “clemência” pelo Santo Ofício: ficou mais um mês presa e passou a ser instruída na fé “necessária para sua salvação”.

Eloi Nascimento

Eloi Nascimento tem 30 anos e é considerado um bruxo moderno, famoso por oferecer consultas a celebridades renomadas. Ele possui uma loja de incensos, amuletos, cerâmicas e outros itens, além de jogar cartas, ler rosto, mãos e pés e conhecer a fundo sabedorias das culturas indígena, iorubá, árabe e hindu.

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E esse são só alguns dos bruxos e bruxas que deixaram e ainda deixam sua marca na história da feitiçaria no Brasil. Já que você leu até aqui, reflita novamente sobre o que vem à sua mente ao pensar em “bruxaria”. Esperamos ter contribuído para desconstruir esse conceito e que a imagem tradicional e equivocada tenha dado lugar à multiplicidade de crenças pagãs com o objetivo de cultuar a natureza e superar preconceitos!

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