Autoconhecimento Convivendo

A Desumanização

Mulher sentada em um gramado, lendo um livro
Kieferpix / Getty Images Pro / Canva
Escrito por Juliana Meyer Luzio

“Quando for grande, quero ser de outra maneira. Quero ser longe.

Eu respondia: ninguém é longe. As pessoas são sempre perto de alguma coisa e perto delas mesmas.

A minha irmã dizia: são. Algumas pessoas são longe. Quando for grande quero ser longe.

E eu respondia: eu acho que quero ser professora.”

“A minha mãe, por seu lado, perdera o modo de se apaziguar. Rejeitava cada coisa. Era rigorosa, não desculpava ninguém e não se desculpava. Estava em guerra. Não sabia, na verdade, punha as mãos às cegas no mundo. Como se estivesse viva num mundo morto.”

“Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar.”

“Limpa ou suja, toda eu me pertencia. Talvez por isso o ódio deixasse de ter sentido. Porque o que viria a ser dependia do que decidisse.”

Essas falas estão no livro “A Desumanização”, de Valter Hugo Mãe, um livro que circula entre o pesado e o triste e entre a poesia e a descoberta do amor.

Essas falas me tocaram, por isso escrevo esse texto para refletir junto com você o que cada uma evoca e nos convida a sentir.

Mãe de braços cruzados e de costas para a filha
JackF / Getty Images Pro / Canva

Sigridur é o nome da personagem que quer ser longe e esse desejo dela já nos convida a olhar o horizonte, a ficarmos de cabeça erguida e atentos a tantas possibilidades que estão diante de nós. Ela nos lembra que passamos o dia olhando perto, olhando de forma fechado para uma tela que ilusoriamente acreditamos nos levar para longe, mas que, de fato, não nos tira da cadeira.

Nosso olhar hoje é limitado às telas do computador, do celular, da TV e, com isso, perdemos a amplitude, o outro que se encontra ao nosso lado e, principalmente, a nossa imaginação.

Quem me lê agora me conta, como andam seus sonhos? Quantos são os momentos de devaneios e de fantasias vividos no dia a dia?

Ir para longe é saber-se mais, é sentir-se mais.

Ir para longe e olhar-se em um continuum com tudo que está volta e experimentar a real sensação de pertencer, não uma sensação do eu e do outro ou do eu e das outras coisas, pois isso é ser perto.

Ir para longe é uma certeza de ser uno e, portanto, infinito, inexplicável e incomparável.

Somos grandes, todos nós, porque somos vida em forma concreta, limitada e finita, mas há algo em cada um de nós que sobrevive, que perdura por toda eternidade.

Mulher encarando sua sombra, que é bem maior que ela
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A mãe, por sua vez, leva-nos à nossa pequenez, à ficção que criamos de nós mesmos e das outras pessoas, inclusive daquelas que não conhecemos, mas que insistimos em julgar.

A mãe nos convida com toda sua rigidez e tormenta a nos questionar – como está nosso olhar para nós mesmos? Como está nossa capacidade de nos sabermos imperfeitos, falhos e vulneráveis? Como está nossa arrogância frente às escolhas alheias? Como anda a compreensão de que não sabemos quase nada?

Essa mãe em guerra somos nós querendo mais e sempre mais, desconsiderando os efeitos e os impactos desses quereres. Uma guerra interna nutrida por insatisfações, frustrações e outra externa que destrói a natureza, que produz lixo, que não respeita a vida.

Vivos num mundo morto estamos nós a cada vez que escolhemos ser definitivos, inatingíveis, superiores e absolutos no saber.

Chegamos, assim, ao pai, aquele ser que não escapava de si mesmo, que se predava, abatia-se e se consumia. Um ser singular como cada um de nós!

Por que temos escolhido a solidão e o individualismo em sua pior face?

Por que nos maltratamos tanto, por que somos tão intolerantes com nossas fraquezas e não olhamos para nossas vulnerabilidades como forças movedoras de transformações e como pontes que nos levam ao outro singular, frágil e vulnerável assim como nós?

Por que autoexigimos e, consequentemente, exigimos de quem nos cerca a perfeição?

Até quando viveremos narrativas irreais sobre quem somos em vez de nos permitirmos sermos humanos que sentem e que precisam de companhia para constantemente se descontruir e simplesmente viver o fluxo da evolução e da impermanência?

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Halla é a personagem que nos conta um trecho da história de sua vida e algo sobre sua irmã — Sigridur, sua mãe e seu pai. Ela nos convoca a ver nossa luz e sombra, nossos amores e dissabores.

É um clamar por generosidade, pelo perdão e pela compaixão. Afinal, como ela mesmo diz: “quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas”.

Halla nos chama para habitar um mundo vivo, amoroso, disponível para o outro, mesmo que esse mundo, num primeiro momento, cause-nos estranhamento ou aversão. E mesmo que ele nos remeta ao pior de nós mesmos, há o pedido de que resistamos para, então, enxergarmos o amor brotando e, assim, irmos tecendo um novo caminho, um novo destino, afinal “o inferno não são os outros… eles são paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti…”

“A Desumanização” é um livro denso e trágico, mas também poético, surpreendente e tocante assim como cada um de nós humanos.

Após terminar a leitura, não consegui retê-la só em mim, precisei extravasá-la em áudios, fragmentos e nesse texto. Espero de coração, portanto, que algo também o toque e o propicie reflexões e transformações.

Abraços!

Sobre o autor

Juliana Meyer Luzio

Terapeuta que constrói sua clínica através de um espaço que integra fala, consciência corporal e quietude, tornando possível uma reconexão com o que há de belo, delicado e muito forte em nós - nossa saúde.

Formada em Psicologia, Psicanálise, Terapia de Integração Craniossacral, Transmutation Therapy, entre outros, está sempre em busca de conhecimentos que agreguem, em seu dia-a-dia maneiras, diferentes de olhar a vida.

Atualmente, além de sua clínica, lançou a Îandé, onde tem se dedicado à arte de criar e costurar produtos exclusivos e cheios de carinho.

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