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De onde viemos? A explicação mitológica

Uma mulher de braços erguidos em meio a um campo repleto de grama.
Cristina Conti / Shutterstock

Quando meu filho tinha aproximadamente sete anos de idade, ele me fez uma pergunta intrigante: “Mãe, onde eu estava antes de nascer?”. Eu dei a ele uma resposta muito simples: “Filho, você estava na barriga da mamãe”. Ele retrucou: “E onde eu estava quando a senhora estava na barriga da vovó?”

Muito surpresa com as perguntas feitas por uma criança em tenra idade, fiquei sem resposta. Respondi com uma outra pergunta: “Filho, por que você quer saber dessas coisas? Você ouviu alguém falando sobre isso?”. “Não, mãe”, ele respondeu, “eu só quero saber da minha vida”.

As indagações de meu filho me revelaram não apenas a sua precocidade, mas também uma curiosidade que move a busca do homem pelo sentido da vida desde os primórdios dos tempos, nas mais diferentes culturas das quais temos conhecimento. Tentar respondê-las exige de cada um de nós um profundo conhecimento do processo de hominização, em cada tempo, nos diferentes contextos históricos. Cada civilização, em consonância com seu nível de consciência, tentou encontrar respostas para questões fundamentais de sua existência.

Os mitos, as religiões, as explicações filosóficas e científicas contribuíram significativamente para a formação das concepções sobre a origem do Universo, da vida em geral e, particularmente, do homem.

Mãos masculinas erguidas em direção ao céu.
rattanakun / Canva

Os mitos são as primeiras expressões de linguagem simbólica usadas pelo homem para explicar o mundo ao seu redor. São narrativas poéticas e intuitivas que demonstram uma forma de racionalidade da espécie humana com características totalmente diferentes da explicação lógico-racional.

Os mitos de origem contam que os elementos da natureza, os seres vivos e os homens foram criados por seres sobrenaturais. Apesar dessas narrativas nascerem em culturas diferentes, têm uma estrutura semelhante entre si, ou seja, revelam uma fase primitiva da consciência humana, uma forma fantasiosa de explicação de todos os fenômenos que influenciavam a vida humana nos tempos mais remotos.

Nesse sentido, tinham uma função ordenadora do pensamento e reguladora da sociedade. Tomemos, inicialmente, como exemplo um mito grego:

Mito de origem da vida na Grécia antiga

“Na origem, nada tinha forma no Universo. Tudo se confundia e não era possível distinguir a terra do céu nem do mar. Esse abismo nebuloso se chamava Caos. Quanto tempo durou? Até hoje não se sabe.

Uma força misteriosa, talvez um Deus, resolveu pôr ordem nisso. Começou reunindo o material para moldar o disco terrestre, depois o pendurou no vazio. Em cima, cavou a abóbada celeste, que encheu de água e de luz. Planícies verdejantes se estenderam então na superfície da terra e montanhas rochosas se ergueram acima dos vales. A água dos mares veio rodear as terras. Obedecendo à ordem divina, as águas penetraram nas bacias para formar lagos, torrentes desceram das encostas e rios serpearam entre os barrancos.

Assim, foram criadas as partes essenciais de nosso mundo. Elas só esperavam seus habitantes. Os astros e os deuses logo iriam ocupar o céu; depois, no fundo do mar, os peixes de escamas luzidias estabeleceriam domicílio, o ar seria reservado aos pássaros e a terra a todos os outros animais ainda selvagens.

Era necessário um casal de divindades para gerar novos deuses. Foram Urano (o céu) e Gaia (a terra) que puseram no mundo uma porção de seres estranhos.”

Referência:

Pouzadoux, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 15-16.

Mesmo reconhecendo que o pensamento grego representa o marco original da racionalidade ocidental, não podemos desconhecer que os gregos, durante muito tempo, preservaram suas explicações míticas, conferindo-lhes um caráter sagrado e cultural, de tal modo que essas explicações influenciaram o modo de agir e pensar daquele povo, independentemente das transformações ocorridas na sociedade de então.

Não podemos negar o significado e a importância dos mitos para a formação da identidade de cada civilização e para a construção da sua cultura. De uma forma muito breve, destacamos a seguir outros mitos de origem.

Na visão do hinduísmo, na Índia, uma tríade divina é responsável por cada fase da vida: Vishnu (deus responsável pela conservação e sustentação do mundo) o preserva, enquanto Shiva o destrói, inaugurando novos ciclos no mundo criado por Brahma.

Uma estátua em grande relevo dos deuses pertencentes ao hinduísmo.
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Este, ao inventar o mundo e as coisas, dá origem a outras duas entidades, Gayatri e Purusha, cabendo a esta última criar os homens. Para os habitantes da Mesopotâmia, o céu e a terra foram criados por Abzu (elemento masculino) e Tiamat (elemento feminino). Tiamat criou o céu, do qual nasceu Ea (princípio mágico) que engendrou Marduk. Este derrotou os outros deuses e dividiu o corpo de Tiamat, separando assim o céu da Terra e, com o sangue de um monstro derrotado, produziu o primeiro homem.

A Bíblia, livro orientador e regulador da vida dos judeus e cristãos, apresenta no Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento, a narrativa da origem do mundo e do homem com uma linguagem alegórica semelhante aos relatos mesopotâmicos: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas.

Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz ‘dia’ e as trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia. (…) Deus disse: ‘Fervilhem as águas, um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, diante do firmamento do céu’ e assim se fez. (…) Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.” O segundo capítulo do Gênesis traz um relato mais antigo sobre a criação: “Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.”

Entre os povos americanos, os maias, povo pré-colombiano que habitava a região Mesoamérica, explicavam a origem do mundo em treze etapas. Na primeira, Hunab Ku, o deus uno, fez-se a si mesmo e criou o céu e a terra. Na décima terceira, tomou terra e água, misturou-as e moldou o primeiro homem. Porém os maias consideravam que vários mundos se haviam sucedido e que cada um deles teve fim em consequência de um dilúvio.

Em outras religiões ameríndias, as crenças e os mitos cósmicos também se relacionam com os elementos da natureza. Para os incas, o lugar da criação do homem pelo deus Huiracochá situava-se perto do lago Titicaca, nas proximidades de Tiahuanaco. Os astecas situavam em Teotihuacan a catástrofe cósmica que pôs fim à idade anterior. Nesse lugar, os deuses se reuniram para deliberar quem se lançaria na fogueira para transformar-se em Sol, o que foi conseguido pelo humilde Nanahuatzin.

No Brasil, a cosmogonia dos indígenas também se reporta a um criador do céu, da terra e de todos os seres que nela habitam. Um bom exemplo é o sublime e belo mito guarani:

Mito guarani de origem da vida

No começo do mundo havia uma grande escuridão, naqueles tempos em que o céu e a terra ainda não existiam. Foi aos poucos que surgiu o primeiro demiurgo, Nhamandu, o nosso pai, aquele que tem ouvidos e olhos melhores do que as pessoas comuns. Ele surgiu sozinho, foi se desdobrando de si mesmo. Formou-se ali no escuro, sem pai nem mãe.

Uma fenda ou o contorno de um planeta visto em completa escuridão.
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(…) E fez também as suas duas palmas das mãos. Contam que em uma delas segurava um bastão e, na outra, um ramo de flores. Com o bastão ele formaria a terra, que até então não existia. Vestia também um cocar magnífico, um cocar brilhante. Parece que de suas penas saiam flores e que dessas flores surgiu o primeiro beija-flor, que ficava ali, pairando nos ares (…)

Tudo ainda estava muito escuro, mas Nhamandu tinha sua própria luz. Era como se um sol ficasse dentro de seu coração. Era a luz de seu saber, com o qual ele brilhava enquanto estava ali, em meio à ventania dos tempos primeiros. Ele sabia que era necessário formar o céu e a terra que ainda não existiam, mas pensou em antes fazer algo muito mais importante.

Nhamandu se preocupava com as pessoas que surgiriam depois. Queria que seu conhecimento chegasse até os seres humanos e não se perdesse. Para que isso pudesse acontecer, Nhamandu decidiu fazer a fala, mas uma fala elaborada, especial. Essa fala era seu próprio saber, que vinha de dentro daquele sol interior. E esse saber era o amor. Com isso, Nhamandu imaginou que os viventes pudessem viver melhor no futuro. Com a fala e o amor.

Quando sua fala iluminada surgiu, ele passou a fazer outras coisas que seriam importantes para o surgimento do mundo. Começou por formar os outros Nhamandu. A partir de sua sabedoria, fazia outras divindades semelhantes a ele (…) com o seu pensamento, fez com que a terra surgisse bem ali, a partir da ponta desse instrumento mágico (o bastão).

Mas ainda era necessário colocar coisas na terra, que até então era muito nova e estava completamente vazia. No centro do mundo, ele pôs uma grande palmeira azul, indestrutível. E depois posicionou mais quatro palmeiras em cada um dos quatros cantos. Essas primeiras palmeiras serviam para amarrar a terra, para deixá-la estável.

A órbita do planeta terra.
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Foi assim que o mundo começou a surgir, até que aos poucos ganhasse o aspecto que conhecemos hoje (…).

Era melhor esse mundo que começava a existir: não havia doenças, guerras e problemas como no nosso. Conta-se, porém, que uma serpente o estragou (…) depois que a terra já estava formada, Nhamandu resolveu se recolher no céu profundo. Deixou por aqui seus auxiliares, que deveriam cuidar das pessoas para que não se esquecessem de seu conhecimento. Tupã é um deles, um dos principais (…)

Referência:

Cesarino, Pedro. Histórias indígenas dos tempos antigos. São Paulo: Claro Enigma, 2015.p.15-19

Finalmente, é necessário destacar a importância da narrativa mítica como ponto de partida do conhecimento filosófico e científico. Antigas invenções como os gnômons, os relógios que fazem sua medição a partir do deslocamento da luz solar, relacionam-se ao modo de compreensão das leis naturais expresso nas narrativas míticas. Foi para entender qual dos deuses predomina numa determinada região que os indígenas empregaram o relógio de sol que, por sua vez, já havia sido usado por povos distantes no tempo e no espaço (Egito, China, Grécia), no momento em que o conhecimento mitológico se impunha sobre qualquer outro.

Você sabia, meu caro leitor, que os mitos arcaicos, embora tenham surgido em tempos imemoriais, atravessam os séculos e, de certa maneira, continuam influenciando ainda hoje a caminhada de todos os povos do Oriente e do Ocidente? Você já percebeu que muitos mitos, com seus símbolos e rituais, orientam e modelam, seja de forma benéfica ou de forma maléfica, nossa vida cotidiana, nos dias atuais?

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Observe as novelas e os filmes que assiste, as personalidades que admira, os ritos de passagem dos quais costuma participar, as atrações artísticas e esportivas que mais lhe mobilizam e comovem. É um bom exercício reflexivo.

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

Contato:
Email: ceicacb@hotmail.com