Autoconhecimento Comportamento

O destrambelhado

Mesa com papéis e maquina de datilografia
aleksandr kichigin / Canva

Na minha vida, trago um histórico de esquecimentos tão memoráveis que ofereceram contribuições importantes para construir o folclore de minha família, o elenco daquelas estórias que – a cada vez em que a gente se reúne para um aniversário ou alguma outra ocasião especial – sempre alguém se lembra de reviver, para divertimento de todos. Lembrado assim, depois de passado um bom tempo, realmente fica muito engraçado.

Mas só quem vive na pele os problemas que eu tinha com meus esquecimentos é que pode avaliar o que eles representavam na hora em que aconteciam: eram choques às vezes tão fortes que me davam a impressão de que eu ia cair fulminado com tamanha descarga de adrenalina no corpo. Sentia como se todo o sangue das veias subisse para a cabeça: as pernas tremiam, ficava pálido como papel, o coração parecia que ia estourar dentro do peito de tão acelerado! Isso me deu a certeza de que minhas funções cardíacas estavam em perfeita ordem, pois senão eu já teria tido uma síncope fatal em alguma dessas ocasiões.

Depois que a maioria dos casos se tornou de “domínio público” da família, resolvi reuni-las neste conto na esperança de que algum dia pudesse até virar livro, ou algum médico pudesse vir a mim pra me dizer que isso tinha cura, se é que até esse ponto eu tivesse sobrevivido aos esquecimentos que ainda estariam por vir.

Perda de documentos, dinheiro, papéis importantes etc. eram rotinas desde que nasci, principalmente em cada início de mês, quando todas as contas tinham que ser pagas. Acho que quanto mais coisas eu tinha na cabeça ao mesmo tempo, em alguma delas eu iria “dançar”, pois meu cérebro escolhia uma, pelo menos, para apagar, como para se poupar do excesso de carga só pra me botar em pânico. Rotina ainda era eu sair de casa e voltar antes de caminhar os primeiros vinte metros porque havia esquecido a carteira e, ao voltar para apanhar a carteira, largava os óculos que estavam na mão!

Mas isso, de tão comum, eu nem ligava mais. Os que me levavam ao pânico eram os que implicavam em grandes perdas como os que aconteceram em duas semanas seguidas, em certa ocasião. Na primeira eu havia recebido uma boa soma em dinheiro de um cliente e, ao chegar em casa, coloquei o maço de notas na gaveta da cômoda. Na manhã seguinte, como haviam muitos pagamentos a fazer – e já conhecendo a minha cabeça – tratei de tirar logo o dinheiro da gaveta e deixá-lo à vista, junto com as contas a pagar, sobre a escrivaninha do meu escritório. No momento em que o fazia, lembrei-me de ligar para transmitir alguma instrução para minha secretária. Feito isso, vesti-me e saí para o trabalho. Era dia em que a faxineira fazia aquela devassa na casa e ela começara a trabalhar havia bem pouco tempo conosco.

homem de terno a caminho do trabalho
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Por minha vez, trabalhei durante toda a manhã e, na hora do almoço, peguei a moto e fui em casa para almoçar. Planejara pagar as contas na parte da tarde (ainda não havia internet para fazê-lo por meio eletrônico). No caminho, apalpei os bolsos ao lembrar-me do dinheiro que reservara para os pagamentos. Dei então pela falta da mochila que deixara no escritório do cliente e me encontrava em pleno trajeto sem um documento sequer. “Tudo bem!”, pensei, “o dinheiro está na mochila e, ao voltar do almoço, eu pago as contas!”. Ao retornar para o cliente, fui diretamente para a mesa onde estava minha mochila e a abri. Revistei-a toda e não havia nem sinal do dinheiro. Entrei em pânico, mesmo tentando aparentar calma para o cliente não perceber meu estado de tensão. Tentei trabalhar mais algum tempo, mas a preocupação com o dinheiro não me saía da cabeça. De repente, a última imagem que me veio do maço de notas foi de quando o coloquei sobre as contas na escrivaninha de casa, pela manhã. Despedi-me do cliente e corri para casa, no meio da tarde. Minha mulher não estava, claro, pois ainda era cedo para voltar do trabalho e a casa estava de pernas para o ar em meio à faxina. Fui diretamente ao escritório e não havia nada na escrivaninha. Revirei gavetas, bolsas, carteiras, olhei nos lugares mais inusitados – como dentro do frigobar, que tinha no meu escritório – e nada! A faxineira acompanhava a minha correria quase tão nervosa quanto eu. Deve ter achado estranho eu procurar até dentro da geladeira!

Na tentativa de tranquilizá-la, apesar do meu próprio pânico, eu lhe disse que olhara no frigobar porque quando eu ficava com muita coisa na cabeça para fazer, como estava naquela manhã, então não era incomum apanhar uma garrafa d’água quando tivesse o dinheiro na mão, e na hora de guardá-la de volta trocar as bolas, deixando a garrafa de fora e botando o dinheiro dentro da geladeira! Ainda completei: “Quando estou nesses estados de desligamento qualquer coisa é possível!”. E não havia nenhum exagero nisso: já larguei coisas que tinha na mão na gaveta das minhas cuecas ou misturadas aos livros na estante. Mas isso não tranquilizou a faxineira, que repetiu uma dúzia de vezes que qualquer coisa de valor que encontra, quando trabalha na casa dos patrões, ela o deixa em lugar visível para ser vista pelo dono.

Não adiantou dizer que nem me passou pela cabeça desconfiar dela. E era verdade! Achei que só restava me conformar para não ficar mais estressado. Deitei-me no sofá e relaxei. Só aí é que comecei a reconstituir a cena da manhã na escrivaninha… Lembrei-me de que estava vestido com o roupão, recém-saído do banho. Tive um pressentimento: levantei-me e fui direto para o banheiro. Enfiei a mão no bolso do roupão e lá estava ele: todo o dinheiro que sumira! A essa altura eu já havia telefonado para minha mulher e colocara todo mundo à minha volta em polvorosa.

À noite, quando ela chegou, contei-lhe que havia encontrado o dinheiro, constrangidíssimo, e lhe pedi, envergonhado, que não contasse pra ninguém. Mas ela fez questão de me fazer contar pra faxineira para que ela também se aliviasse, e com toda razão!

Apenas uma semana depois, outro fato parecido aconteceu: eu havia recebido um cheque de valor pelo menos quatro vezes maior do que o dinheiro da vez anterior, e ao portador, para piorar ainda a situação. Ia mandar minha secretária ao banco para depositá-lo, mas só me lembrei disso em casa, na hora do almoço. Fiquei maluco, sem me lembrar de onde deixara o cheque, que não estava mais na minha carteira. Muitos aflitivos minutos depois, lembrei o passo a passo que fizera antes de sair do trabalho: a última coisa de que me recordava é de que posicionara o cheque na máquina de escrever para colocá-lo em meu nome. Liguei para minha secretária, pedindo que conferisse o que estava me lembrando: o cheque estava ainda na máquina e, detalhe: esta estava coberta com sua capa protetora. Simplesmente um funcionário nosso me interrompera na hora que eu datilografava meu nome no cheque e eu saí dali sem retirá-lo da máquina!

Homem escrevendo na máquina de datilografia
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Nos dois casos mencionados, tudo não passou de um susto. Mas houve uma ocasião, num fim de semana, em que não pude evitar o prejuízo: com uma capanga recheada de dinheiro, documentos e cartões de crédito, convidei meu filho para um passeio no Cristo Redentor, de carro. Já na saída, antes de entrar no carro para descer morro abaixo de volta, quis comprar pipoca pra gente. Abri a capanga sobre a capota do carro e peguei o dinheiro. Alguém atrás de mim buzinou, querendo passagem. Eu entrei no carro e desci o morro. Só quando já estava no Cosme Velho me lembrei que a capanga ficara na capota, no estacionamento do Corcovado, mas já era tarde. Semanas depois, alguém ligou para minha casa dizendo ter encontrado a carteira já vazia, mas nunca apareceu para entregá-la. Eu tive que tirar todos os documentos novamente, bloquear os cartões de crédito e perdi todo o dinheiro, e era uma soma vultosa, que deve ter feito a felicidade de quem a encontrara durante um bom tempo!

De outra feita, quando eu morava em Vila Isabel e trabalhava na Cinelândia, eu costumava ir de moto até a estação do metrô da Praça Saens Pena, na Tijuca. Acorrentava a moto na estação e seguia de metrô para o trabalho. Na volta, apanhava a moto e ia para casa. Houve um dia, porém, em que um colega me convidou para ir com ele de carro até Botafogo, na saída do trabalho. Como ele morava próximo à minha casa, aceitei acompanhá-lo. Fomos aonde ele queria ir e depois ele me deixou na porta de casa. No dia seguinte, eu me levanto, me arrumo e vou direto para a garagem para apanhar a minha moto. Fiquei lívido quando encontrei a minha vaga vazia! Chamei o zelador aos berros e lhe disse que roubaram a minha moto dentro da garagem, apesar de ele me afirmar que não havia qualquer sinal de arrombamento ou de invasão na garagem do prédio. Eu rebati que o ladrão deveria ter obtido a chave com algum dos moradores. Quando eu já me dispunha a subir novamente ao meu apartamento para ligar para a polícia, lembrei-me de repente que eu não voltara de moto pra casa, mas de carona com meu colega. Tomei um táxi e saí desesperado para a Praça Saens Pena, e lá estava ela: acorrentada no mesmo lugar em que a deixara na manhã do dia anterior, toda molhada da chuva da noite!

Algum tempo depois, quando estava com uma moto novinha e ainda pagando as prestações, aprontei outra no mesmo estilo: um amigo me chega no trabalho já no final do expediente e me diz que pensou que eu não estivesse mais na empresa, pois que não vira minha moto lá embaixo, onde eu sempre a colocava, na porta do prédio. Eu olhei para ele e achei que estava brincando, só pra me assustar, já que ele costumava se divertir nos pregando umas peças de vez em quando, no velho estilo do “Lobo! Lobo! Lobo!” da fábula do pastorzinho mentiroso. Ele reafirmou que a moto não estava e que não se tratava de brincadeira. Descemos eu e ele as escadas, eu pulando os degraus de três em três. Dei lá embaixo com a calçada vazia e gritei pra ele: “Meu Deus, roubaram minha moto!”. E ele: “Que é isso, Luiz! Você tem certeza de que a moto estava aqui mesmo?”. “Mas claro!”, disse eu, “aonde mais eu deixaria a moto?”. Só que ao dizer “aonde mais eu deixaria a moto?”, meu cérebro deu um lampejo e eu me vi na rua, há coisa de uma hora antes, vindo em direção à empresa, e A PÉ! O detalhe que me fez lembrar disso foi que eu encontrara um conhecido no caminho e o cumprimentara com um aperto de mão. Eu simplesmente havia ido de moto reconhecer uma firma num cartório a poucas quadras da empresa e, ao sair, nem me lembrara – por ser perto – que eu havia ido de moto e a larguei lá, em cima da calçada. Fomos os dois até lá e de fato lá estava ela, bem em frente ao cartório, já fechado!

Houve um outro caso não menos inusitado em que eu havia chegado de uma de minhas viagens a trabalho, que durara cerca de 4 dias, quando dei pela falta do meu chaveiro que contém cópia de todas as minhas chaves. Depois de procurar pela casa inteira, sem sucesso, veio-me à cabeça um “flash” do último dia de viagem, num final de semana, lembrando-me que estivera na casa de um meu amigo antes de seguir para o aeroporto. Liguei imediatamente para ele, que me disse que não encontrara nenhum chaveiro meu em sua casa. Perguntou se por acaso eu não deixara dentro do meu carro, quando estivera lá da última vez. Nesse exato momento me vieram mais dois “flashes” à memória: em um deles eu via o chaveiro perdido no console do carro, tão nitidamente como se o estivesse vendo num filme. No outro, eu me via saindo da casa do meu amigo a pé, pois me lembrava de ter olhado para a janela do seu apartamento quando atravessava a rua e de ter passado na padaria no caminho, posto que ele morava a apenas três quadras de minha casa.

Ele, pelo telefone, me deu a dica, ainda completando: “Olha, eu vi um carro na vaga que eu vejo daqui da minha janela (do décimo andar!) exatamente onde você estacionou o seu quando veio aqui no domingo… deixa eu dar uma olhada!” (foi na janela e voltou ao telefone). “E é exatamente igual ao seu carro!”. Eu dei um pulo: “Meu Deus!”, falei, “eu voltei a pé quando vim de sua casa! Eu deixei o carro aí naquele dia!”. Desliguei o telefone e fui checar na garagem: o meu carro realmente não estava lá. Eu havia ido de carro para a casa do meu amigo, e como estava acostumado a ir e vir a pé por ser próximo de casa, quando saí esqueci que fora de carro e deixei o carro na rua, em frente ao prédio, durante os quatro dias em que estivera viajando. Saí voando para a casa do meu amigo e, de fato, encontrei o carro em frente, na rua, todo sujo pelos quatro dias de abandono ao tempo. Detalhe: o chaveiro estava no console, exatamente no local que eu o vislumbrara em um de meus “flashes” de memória.

Acho que Deus protege os distraídos, pois da mesma forma de quando esqueci minha moto na praça da outra vez, nenhum ladrão prestou atenção nela, apesar do fato de que ambos os lugares fossem conhecidos como de alto risco para roubo de veículos. Meu amigo até hoje, muitos anos depois, dá gostosas gargalhadas ao lembrar que eu estava somente em busca do meu chaveiro perdido sem sequer me lembrar de que o que eu havia abandonado, mesmo, era o meu carro. De certa forma, o índice de adrenalina desta vez foi muito menor, pois que eu evitei encontrar o espaço vazio na garagem e passar outro vexame ao sair dando o alarme de que haviam roubado o meu carro dentro do condomínio, como aconteceu com a moto!

Se eu fosse contar todos os casos de esquecimentos que já me aconteceram, pra falar só dos que envolveram minhas motos ao longo de décadas de uso – como deixá-las no estacionamento de um supermercado e depois sair dele a pé –, que se tornaram mais do que comuns, teria que escrever um livro de pelo menos umas quinhentas páginas, em vez de um conto. Mas, de todo modo, o que vou contar agora, mesmo tendo ocorrido há tantos anos, mereceria no mínimo um prêmio do pai-pateta do ano por qualquer programa de TV que se dispusesse a divulgar tais estórias, pois que até hoje me deixa ruborizado quando lembro da situação constrangedora que provoquei por conta do desligamento mais histórico de toda a minha vida! Pode-se imaginar alguém esquecer o próprio filho e não se lembrar de onde o deixou? Pois é: eu fiz isso, acreditem!

Ele já é adulto hoje, mas na época tinha apenas quatro anos de idade. A mãe dele, durante meu primeiro casamento, àquele tempo estava completando seu curso de enfermagem, o que a obrigava a ir da escola para seus estágios no hospital em dias e horários alternados. Nosso filho frequentava o pré-escolar na parte da tarde, em um colégio que ficava no caminho da empresa onde eu trabalhava, em Niterói. Nos dias em que a mãe dele tinha aulas e estágio, passando o dia todo fora, eu saía com meu filho pela manhã e o deixava na casa de uma tia de minha mulher, madrinha de nosso filho, onde ele ficava até a hora do almoço, e então seguia para o trabalho. Ao sair da empresa para almoçar, eu o apanhava na casa da tia Lourdes para deixá-lo no colégio antes de retornar para a empresa, para o expediente da tarde. À noitinha não havia preocupação com nosso filho, porque o próprio transporte escolar do colégio se incumbia de entregar as crianças em suas casas, e quando o Dany chegava, um de nós dois – eu ou minha mulher – já estava lá esperando por ele.

Num daqueles finais de tarde, eu chego em casa e não encontro ninguém, apesar de ter-me atrasado e, àquela hora, já era de hábito os dois estarem em casa. A estranheza inicial, então, cedeu lugar ao entendimento de que, já se encontrando em casa quando a kombi chegou, minha mulher por certo saíra com nosso filho para ir a algum lugar ali por perto, talvez para uma pequena compra, na casa de um vizinho ou coisa assim.

Homem de terno sozinho em casa
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Mas o tempo passava e nada de chegar ninguém. Lá por volta das oito da noite, eu ouço passos no corredor e vou até à porta. Vejo minha mulher chegando, porém sozinha. Imaginei o Daniel ainda subindo as escadas do prédio atrás dela, como às vezes ele fazia, e fiquei aguardando que chegasse, até perguntar: “Ué! Cadê o Dany? Não está com você?”. Minha mulher arregalou os olhos, já assustada, e repetiu para mim a pergunta que eu fizera a ela: “O Daniel não está com você?”. Nem precisei responder, pois ela percebeu que não pela minha cara de pânico, e também não fez por menos: “Meu filho! Meu filho! Onde é que está o meu filho?”. Ela chorando e aos berros de “meu filho!”; eu tentando evitar que ela se descontrolasse, mas estava eu próprio também com o coração aos pulos! Só consegui dizer, após alguns segundos tentando entender o que acontecia: “Fica calma! A kombi pode ter furado um pneu ou quebrado no caminho! Estou indo lá no colégio! Se acalme! Eu vou buscá-lo!”. Disse isso apenas para tentar amenizar o estado de desespero em que ela se colocou, mas eu mesmo estava a ponto de “ter um troço”, pois não me lembro de ter experimentado outra sensação tão horrorosa de pânico em toda a minha vida! À época não havia celulares e não havia clima para se esperar por explicações por telefone para tentar descobrir o que havia acontecido.

Peguei minha moto e saí tal qual um doido pelas ruas até o colégio do nosso filho. Do bairro onde morávamos até o colégio eram uns 3 ou 4 quilômetros, e aqueles foram os minutos mais longos de minha vida. Eu ia furando todos os sinais de trânsito, desviando dos carros e das pessoas como um piloto maluco no comando da motocicleta enquanto chorava e rezava ao mesmo tempo, enquanto gritava por debaixo do capacete: “Meu Deus, onde está o meu filho!?”. Cheguei ao colégio, já vazio, passei diretamente pela secretaria da escola sem nem ao menos me dirigir à secretária do diretor, que veio atrás de mim aos gritos de: “Senhor! Senhor! O senhor não pode entrar na sala assim!”, e eu nem olhava para ela. Fui invadindo o gabinete da diretoria. Encontrei o diretor do colégio em sua mesa. Eu, sem fôlego, não conseguia nem explicar o que estava acontecendo. Só lhe perguntava: “Onde está o meu filho? Meu filho não chegou em casa! A kombi não o entregou! Onde vocês botaram o meu filho?”. O homem ficou nervosíssimo, mas tentava me acalmar, como antes eu fizera com minha mulher: “Fique calmo! A kombi pode ter invertido o roteiro de entrega dos meninos e o seu filho ficou por último!”. “Mas já é tarde!”, eu gritava, “não é possível que ainda estejam na rua!”.

O diretor resolveu ligar para a residência da inspetora da kombi, que sempre seguia junto com o motorista cuidando das crianças. Encontrou-a em casa. Ela disse que não se lembrava de ter visto o Daniel na kombi. Quando o diretor me disse isso, eu tive outro ataque: “Vocês são uns irresponsáveis! De repente na saída do colégio para entrar na kombi o menino escapou pela calçada e vocês nem viram que ele não entrou na kombi! Deixaram-no na rua, sozinho, um menino com 4 anos de idade!”. O homem não sabia mais o que fazer comigo ou o que me dizer. Chamou a secretária e mandou que tentassem localizar o motorista da kombi onde ele estivesse, fossem buscá-lo em casa, qualquer coisa, e rapidamente! Nisso, o telefone toca e era a esposa do diretor. Ela deve ter dito alguma coisa, reclamando por encontrá-lo ainda no colégio àquela hora, quando já deveria estar em casa há bem mais tempo. Entendi isso claramente pela resposta dele, dita aos berros para a mulher, por causa do nervosismo: “Uma criança desapareceu! Um menino de 4 anos está desaparecido e eu sou o diretor deste colégio! Você consegue entender isto?”. E bateu o telefone na cara de sua mulher! Eu assistia à cena quando me veio aquele costumeiro “estalo”: “Tia Lourdes!”. De repente tudo me veio a cabeça de uma vez só, como também era comum acontecer: eu não fora buscar o Daniel na hora do almoço na casa dela para deixá-lo no colégio! Simplesmente almoçara no restaurante da empresa, esquecendo-me que era um dos dias em que deveria pegar o Dany, e ficara direto na empresa até o fim do expediente!

Meu Deus! Depois de toda aquela confusão que eu provocara! O desespero de todos, a secretária, a mulher do diretor… o escândalo que eu fizera em todos os momentos de desespero! Como sair dali agora e me dirigir à casa de tia Lourdes e apanhar meu filho para acalmar minha mulher que em meio àquilo tudo ainda estava no auge de seu desespero!… Senti meu rosto queimando de vergonha! Outro lampejo em meu cérebro deu-me uma saída: voltei-me para o diretor, tentando aparentar autocontrole, e lhe disse: “Acho que assim nervosos não conseguimos raciocinar. Vou ligar para minha casa. De repente minha mulher já tem alguma notícia do meu filho, e ele tenha sido apanhado por algum parente. Na hora do nervoso, a gente não se lembra disso!”. Mas eu dissera isso já tentando disfarçar o meu constrangimento e prepará-lo para o que se seguiria, pois, a essa altura, já me lembrara de tudo e só queria mesmo sair dali.

O diretor ofereceu-me o telefone de sua mesa para confirmar o que eu lhe dissera. Minha mulher atendeu do outro lado da linha e foi logo me dizendo: “Você esqueceu de pegar o Daniel na casa da tia Lourdes! Seu maluco!”. Eu ali, com o diretor colado comigo, procurei fazer o maior ar de espanto: “Graças a Deus! Já estou indo pra aí!”. Desliguei e lhe disse em ato contínuo: “Encontraram o meu filho! Parece que uma tia o apanhou descendo da kombi pouco antes de chegarmos e ficou com ele até chegarmos, não sei bem. Depois eu lhe telefono explicando tudo!”. O pobre homem ainda foi me levando até a porta: “Melhor assim! Graças a Deus que tudo não passou de um susto!”. Estava visivelmente aliviado, eu mais ainda, e agora era encarar a minha vergonha por causa de todo o estardalhaço promovido pelo episódio, que já deveria ser do conhecimento de toda a família e de alguns vizinhos, com certeza, já que o nosso prédio era pequeno, de apenas três andares e com 4 apartamentos por andar.

Eu peguei a moto e saí de lá com o coração apertado de remorso. Desta vez eu colocara minha mulher, o diretor do colégio, a mulher dele, a secretária, a inspetora da kombi, o motorista, meus parentes todos – para quem minha mulher se incumbira de ligar – e a mim próprio na mais extrema situação de pânico por causa de um mero esquecimento, pois que nem chegara a levar nosso filho para o colégio, que passara a tarde inteira na casa da madrinha sem que esta tivesse entendido nada do que havia acontecido para eu não buscá-lo. Mas a sensação de alívio quando tomei meu filho nos braços ao apanhá-lo na tia Lourdes lavou minha alma de todo o desespero anterior àquele momento. Ao chegar em casa, ainda abraçado ao meu filho e tomado de enorme alívio e emoção, recebi uma “escovada” da mãe dele: “Pelo amor de Deus, se você não cuidar de sua cabeça nós vamos acabar num hospício!”. Apesar da vergonha que passou a ocupar o lugar do pânico, eu achei até suave o meu castigo. O remorso que eu estava sentindo por toda a confusão que causara no colégio pedia uma punição maior para que eu me redimisse perante mim mesmo! Nem dormi naquela noite, de tanto mal-estar e de tensão pelo constrangimento incomensurável que agora me corroía todo, somente atenuado pela lembrança de que meu filho se encontrava sereno e seguro no quarto ao lado.

Na manhã seguinte, enchi-me de coragem e fui direto ao colégio do Daniel, onde me fiz anunciar e contei toda a verdade ao diretor. O homem não conseguia nem me dizer o que pensava enquanto me olhava, mas não era difícil imaginar o que seria. Eu não me lembro nem do que ele disse ao final de minha narrativa ao mesmo tempo corajosa e envergonhada… se é que ele disse alguma coisa. Lembro-me apenas de que ele me fuzilou com os olhos. Seu olhar me dava a nítida impressão de que tinha ganas de pular no meu pescoço e apertá-lo até me ver duro e preto no chão! Imaginei a briga que ele tivera com a mulher por minha causa, no ódio da supervisora e do motorista por terem sido incomodados em casa à noite – após a cansativa jornada do dia distribuindo crianças por toda a cidade – responsabilizados ainda por um fato daquela gravidade!… Só consegui pedir desculpas – do fundo do mais intenso sentimento de culpa e humildade que já sentira em toda a minha triste vida de destrambelhado porra-louca – e me levantar da poltrona devagar, cabeça baixa, para tomar o caminho da porta. O homem permaneceu imóvel em sua cadeira, sem dizer um “ah”, de tão passado!

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Eis aí o ponto em que já me levou um dia esta bendita máquina que eu tenho dentro da caixa craniana. Quando me lembro de tais episódios – que graças a Deus tiveram fim com a chegada da maturidade – tento justificar para as pessoas que sempre pensei tão rapidamente a ponto de um pensamento atropelar o outro, e que quando era interrompido em algo que ainda não concluíra, me ligava nessa nova coisa, deixando para trás a que executava no momento, apagando-a quase que instantaneamente da memória, num processo que colocava minha concentração sempre mais à frente que o meu presente imediato.

Tão acostumado me tornei com tal fato que acabei por negligenciar sua importância como causa para as verdadeiras catástrofes emocionais que promovi por causa disso ao longo de boa parte de minha juventude. Ainda bem que a maturidade nos torna mais calmos e tais rompantes foram se amenizando antes que eu sucumbisse por tanta adrenalina bombeada no sangue, poupando ainda as pessoas à minha volta antes também que decidissem por me internar para não enlouquecerem elas próprias… Eu tinha consciência de que meu coração não permaneceria jovem para sempre, e nem os delas, é claro!

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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