Autoconhecimento Convivendo

Há vida aqui

Plantinha nascendo no meio das pedras
Nacho Juárez / Pexels / Canva
Escrito por Andrea Ralize

O dia enlouquece. A rotina enlouquece. Muitas vezes penso que não vou conseguir, vou adoecer de tanto fazer atividades que não me nutrem. Não encontro mais vontade genuína de fazer nada. Não há música nas atividades, ou cores, ou sabores… Enxergo a vida de uma forma acinzentada e isso parece não mudar.

Tomo remédio para depressão. Faço terapia. Sigo uma disciplina de exercícios físicos. Não falto ao trabalho. Mas eu apenas espero. Espero. Espero.

Mas o que de verdade eu estou esperando? Não sei. Sou um ser robotizado, acordo, faço coisas, fico exausta, vou dormir. Durmo mal. Não consigo relaxar. Aperto maxilar. Destruo a placa de bruxismo. E acordo no outro dia para repetir essa coisa sem graça. Sinto que não há vida aqui. Sou um zumbi? Será que sou um zumbi?

Um dia desses, de tão cansada que eu estava, encostei no sofá entre um compromisso e o seguinte e me vi…

“Sentada à beira do mar, eu vejo imensidão. O dia está claro, sem nuvens, e o azul do céu se mistura com o azul das águas, que vão para lá e para cá, quebrando-se em ondas brancas e raivosas, barulhentas, dando sempre um recado: chuá… chuá… o barulho se repete, e o vaivém se renova. Há um diálogo intenso entre as águas e a paisagem. Eu ouço a voz do mar se repetindo: há vida aqui. Há vida aqui. As ondas se quebram e, uma a uma, repetem: há vida aqui. Há vida aqui.

Eu vejo que, ao se quebrarem, elas recuam e voltam para o mar. Elas são o mar. Elas são a vida. E elas, como um relógio, repetem… rotina… mas há vida ali…

A voz do mar me hipnotiza e eu me derreto em mim mesma e penetro a areia macia. Invisível, eu fico no meio do nada, que é tudo, e misturo-me ao vento do Norte. É uma sensação de derretimento, de se transvestir de mar, areia, Sol e diálogo de ondas.

Pessoa com os pés na areia e as águas do mar ao fundo
Jana Menas / Getty Images / Canva

No instante em que tudo isso acontece, eu respiro paz… inspiro paz… inalo paz… exalo paz… Reconheço, então, a capacidade de compreender a linguagem dos deuses e, sem perceber, eu adormeço, mesmo já estando dormindo, nos braços do Poente. O Poente é uma mulher. Ela é linda e maternal. Seus braços me dão o sono que jamais tive.

Não sei por quanto tempo ali fiquei aconchegada, mas, quando acordo, vejo que já é Noite. A Lua está pendurada no céu, suspensa pelo sussurro dos anjos, e lá embaixo vejo luzes das casas distantes do mar. Silêncio total haveria, exceto pela insistente e incansável fala das ondas, que repetem aos desavisados: há vida aqui. Há vida aqui.

Acomodo meu ser em uma nuvem e me percebo. Isso é possível, pois o silêncio é total. Minha mente está aquietada, surpreendentemente os pensamentos não estão ali… Existem apenas brisa, inalação e exalação, batidas do coração que sussurram: há vida aqui.

Ilumino-me instantaneamente ao perceber a unidade entre mim e o mar. Somos um. Eu sou o mar, o mar sou eu. Sentir essa realidade empodera a alma que me habita. Consigo tomar as forças da Natureza e fortalecer meu espírito, meu corpo, minha mente…

O tempo da Noite, com suas nuances próprias, passa, e o Sol ilumina tudo, bem devagar. A imagem à frente se apresenta a mim como um quadro sendo lentamente pintado, com sobreposição de infinitas cores, várias tonalidades douradas. O Sol se coloca no alto, enfim, senta-se no trono daquele dia e reina pomposamente.”

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Sinto algo tocando o meu pé, é uma pomba. Eu volto à realidade da dimensão física em que me encontro encarnada e posso voltar a ver o meu corpo sentado à beira do mar.

Levando em consideração a cronologia do relógio, alguns instantes se passaram. Mas levando em consideração a realidade temporal, foram horas. Essa foi uma experiência única e esplendorosa, então não me esqueço dela jamais. Sempre que estou triste ou abatida pela rotina que me aprisiona neste cárcere mundano, eu fecho os olhos e sinto meus pés na beira do mar, a água quentinha, o céu muito azul, o mar muito azul. Envolvo-me na cor azul e sinto as ondas batendo forte sobre minhas pernas. Observo o vaivém delas. Delicio-me vendo-as se quebrarem sobre os meus pés. Medito por ali. Se possível, fecho os olhos para ter uma visão mais clara desse lapso de consciência. Consciência de que as ondas e o mar são um só. De que eu, as ondas e o mar somos um só.

Sempre que me levanto para “voltar para casa”, ou seja, para voltar para a “realidade”, não sou mais a mesma. Sempre sou um pouco mais lúcida. Um sexto de grãozinho de areia do mar mais lúcida. Não tenho pressa. Agora trago em minhas veias o vaivém das ondas, e o barulho delas, dentro de mim, repete sem parar, para que eu não me esqueça de que há vida aqui.

Sobre o autor

Andrea Ralize

Escorpiana, professora de filosofia, revisora de textos, mãe de três seres de luz, praticante de yoga, estudante de Vedanta e, nas horas vagas, escritora de fragmentos da vida.

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