Comportamento Convivendo

Tudo passa: perder-se do que se era

Imagem de uma mãe sentada em seu sofá, reconfortando o seu filho em um abraço.
Dimaberlinphotos / Canva
Escrito por Nina Veiga

Na dor da infância, a perda do primeiro dente revela a chegada do “nunca mais”. Mas o tempo ensina: tudo passa. A dor se transforma, o crescer ressignifica, e o que parecia fim vira começo. Na impermanência, a vida canta — tudo passa, e, paradoxalmente, tudo fica.

Deitada no chão frio da cozinha, a criança gritava um choro de dor e desespero jamais escutado pela mãe. Seis anos, o primeiro dente de leite na iminência da perda. O menino parecia pressentir que algo dele se perderia para sempre. O nunca mais tomaria a forma inabalável do destino.

As lágrimas caíam do rosto moreno e magro. A voz embargada pelo soluço rompia num grito agudo e sofrido. A mãe, assistindo inaugurar a angústia da existência, sussurra, enquanto pousa no colo a cabeça erguida do chão: tudo passa, amado meu, passa, passa. Ficaram assim, os dois, na cerâmica fria. O silêncio assinalava a certeza do nunca mais.

Passou.
O novo estava por vir.

Não há espaço. A sentença foi dada ali mesmo, de pé, na sala branca e higienizada do dentista. Os olhos negros do pequeno iam do especialista à mãe. Um traço da angústia gritada no chão da cozinha ressurgia diante da promessa do devir ameaçado.

O gosto do soluço cruzando a garanta, onde a pressão do jato gelado ressentia. Os olhares passeavam pela sala, como se a resposta pudesse estar em alguns daqueles vidros, daquelas pequenas gavetas, dos armários de aço escovado e frio. Isso é simples, uns poucos meses com o aparelho noturno e a abertura virá. Abertura? Virá? Devir? Perder?

Iria passar, tudo passa, passa, passa. Crescer. Perceber o significado de cada ‘passa passa passa’, até que o vivido se torne um só passar. Feito sonho, feito brisa, passarinho.

O menino assovia. Melodia alegre, esquecida do grito ido, doído. O menino assovia, a janelinha, no espaço do antes, ajuda.

Há tons sobre tons.

Canção.
Poesia?
Vida.

A vida passa passa passa. Que fica? A certeza de ter passado com ela. A alegria de ter passado nela. A intensidade dela. Fica. Fica?

Tudo fica fica quando tudo passa passa… Tudo tudo. Para sempre. Tudo passa passa, inabalável destino. Tudo fica fica, amado meu, em mim, em ti, em nós que não mais seremos no por vir. Tudo passa.

Sobre o autor

Nina Veiga

A artemanualista e ativista delicada Nina Veiga é doutora em educação, escritora, conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa e suas artes, na perspectiva da antroposofia da imanência. É idealizadora e coordenadora do coletivo Ativismo Delicado e das pós-graduações: Artes-Manuais para Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar. Desenvolve trabalhos de formação de artífices e escritores. Suas oficinas associam o saber teórico-conceitual às artes-manuais como modo de existir e à escrita como produção de si e do mundo.

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