Antes de mais nada, gostaria de esclarecer a você, nobre leitor, que escrever foi uma forma de abraçá-lo. E abraço não requer requinte nem expertise ou qualquer especialidade acadêmica com a língua, com a literatura ou algo do gênero; o abraço na sua simplicidade é um nó que a gente dá para desatar outros nós.
Eu não pretendo desconstruir nem construir opiniões com meus textos, mas pretendo, e de uma maneira extremamente despretensiosa, mostrar que quem lê o que eu escrevo se identifica e talvez acabe se lendo em meus exemplos entenda que não está sozinho.
Ouvi dizer que meus textos acabam permanecendo na zona de conforto, e o texto de hoje é justamente para isso: não para que eu permaneça na zona de conforto, mas que eu consiga levar todos para uma zona de conforto. Conforto da alma. Eu dedico hoje esse conforto a você, mulher, que está a terminar de arrumar a casa e as mochilas e as malas, porque tem que acordar amanhã bem cedo para começar um novo dia (olhei no relógio e era uma hora da manhã). A você, esposa, que está a deixar tudo pronto, e quando se vira apenas para mudar de posição no computador, observa seu digníssimo descansando, dormindo o “sono dos justos”, olha para o outro lado vê seus filhos e já analisa: estão com cobertas, travesseiros, pijamas, estão com semblante tranquilo…
Corre, olha a agenda, não tem tarefa, não tem médico, o dentista é para outro dia; será que amanhã pela manhã estará frio? Deixarei uma troca de roupa para o frio e outra para o calor. Já deixo o chinelo e um tênis também. Olha o uniforme do marido, a calça, o sapato, ufa está tudo certo. E viva a igualdade de gênero!
Minha filha se recusou a falar oi para um parente e de repente todos me olham, com um ar de reprovação: nossa ela tem que ser mais educada, mãe, atente-se para isso. Tudo bem, vou atentar-me. Mãe, o que tem para comer? O que você deseja comer filha? Faço em um minuto! Amor, não esquece de separar as faturas para eu passar no banco amanhã. E não esquece heim, você anda muito esquecida. Tudo bem, marido, irei atentar-me. Alô é você? Nossa fiquei esperando seu e-mail com a planilha e os 599 nomes digitados todos corretamente e você ainda nem me mandou!
Se achar que você não consegue digitar, me fale que eu encontro alguém que consiga. Perdão, farei isso antes de deitar-me. Amiga o que houve? Vi que ganhou uns quilinhos, vamos na academia mais tarde, se engordar já sabe que vai ficar horrorosa não é mesmo? Claro, irei no meu horário do almoço, depois de deixar o almoço pronto.
Professora, aquela lição da página 21 que a senhora pediu para a semana passada, não consegui fazer porque meu cachorro passou muito mal, acabou falecendo, estava de luto até este momento e após o luto a primeira coisa foi fazer a atividade. A senhora poderia me ajudar? Tenha compaixão, eu passei esses dias de luto. Poxa, José, de novo, seu gato morreu no bimestre passado, agora seu cachorro! Faz o seguinte: junto com a atividade, me escreva uma redação de quantos animais você tem na sua casa para eu saber quem será o próximo, tudo bem?
Abrindo a caixa de e-mail: prezada graduanda, contamos com sua responsabilidade de entregar seu texto com no mínimo oito mil e quatrocentas páginas até meia noite de hoje para que possamos analisar a sua capacidade de lecionar e pensarmos na possibilidade de aprovação para a próxima etapa, que após concluída, faltará apenas 200 módulos. Mensagem: Olá, querida, tudo bem? Vi que sumiu, gostaria de contar com sua ajuda numa ação filantrópica de arrecadação de cinquenta milhões de alimentos. Posso contar com você, não é mesmo? Claro, pode colocar meu nome.
E daí finalmente você chega no seu serviço. Bom dia. Nossa que cara de acabada. Por que está tão cansada? Com as aulas remotas professor não está nem trabalhando, não é mesmo? Tem que dormir para não ficar enrugada. E no final do dia, de pijama desmaio na cama e ouço no fundo da minha quase inconsciência: nossa, amor, você ficou de assistir a um filme comigo. Foi dormir e deixou as crianças acordadas, não consigo cuidar delas. Alguém te mandou mensagem e um e-mail. Ligaram da portaria do prédio e tem correspondência pra você. Final de semana. Nossa, amor, está doente? Acordou hoje às oito e não às seis. Já te falei para procurar um médico.
Coloquei alguns diálogos quase monólogos que as pessoas acham que têm o direito de ter com a gente, sem ao menos conhecer a nossa história. A contemporaneidade nos trouxe maravilhas, mas manteve o machismo exacerbado, a cobrança em cima da mulher que, não, não vai acabar por não ser algo simples.
A gente ainda não consegue se posicionar sem ter que estar o tempo todo se desdobrando ou se justificando. Vão questionar suas tarefas; depois seu modo de executá-las, posteriormente se conseguir conciliar tudo, irão falar que você é superficial e não sabe viver a vida.
O fato é que mulheres que lutam para um futuro diferente para suas filhas, para as gerações futuras, muitas vezes se encontram sozinhas e completamente isoladas ou pela quantidade de afazeres ou pela quantidade de cobranças.
Qual mulher nunca andou um pouco mais depressa porque achou que estava sendo seguida? Qual nunca enfrentou o assédio sem nem ao menos poder expor o caso já sabendo que não haveria a menor chance de um reconhecimento, que mulher nunca se olhou no espelho e jurou que vai ficar sem comer para emagrecer os 5 quilos que o marido criticou? Qual mãe não desejou infinitamente dormir antes da meia noite…
Quantas e quantas vezes a gente tem que se levantar e tentar, continuar, seguir, mesmo após um não, uma ofensa, um descrédito. Quantas foram as vezes que você chorou no banheiro para ninguém ver?
É intrigante a forma com que somos questionadas, cobradas e na maioria (senão em todas) das vezes julgadas. Mas devemos seguir.
Sei que as reclamações e reivindicações que recebemos muitas vezes dependem mais de terceiros do que de você.
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O que gostaria de deixar hoje é que mesmo que pareça ou apareça algo insuportável, vai passar. E que você tenha maturidade para ser quebrada ao meio e não revidar. Seja fiel à sua essência e não abra mão do que te diferencia dos outros. Já ouvi dizer que quem tem o coração bom acaba sofrendo muito, mas é sempre bom lembrar que é o nosso coração bom que nos faz voar alto.
Não se esqueça de que é você que faz caber 48 horas em 24 horas de um dia. Você é especial como todas nós.
Que esse meu abraço desate alguns nós, e mesmo se não, que impeça que sejam criados.