Comportamento

A conturbada relação de uma aranha e sua mosca – Episódio IX: aprendendo a lidar com portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista

Um homem se abraçando e sorrindo.
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Que o mal é tão verdadeiro quanto tudo o que vemos em volta, e desde que o mundo é mundo ele trava uma batalha incansável contra as forças do bem, disso ninguém duvida, seja pela ótica do crente ou do ateu, do crédulo ou do cético, do real ou do imaginário. O debate, como sabemos, nunca esteve em torno da existência ou não do mal, mas sobre sua natureza e a forma de se introduzir e se instalar na vida humana de modo a se sair vencedor dessa guerra eterna.

Entre especialistas do comportamento que se detêm na análise de seres humanos, muitos sugerem um ser maligno habitando entre nós, poucos conseguem se aproximar mais da imagem demoníaca que nos foi incutida do que a da mente psicopática, em todas as variações que revela. Seu “modus operandi” — se traçado um paralelo com a personificação do mal pela ótica cristã — reproduz de forma tão precisa a do anjo caído bíblico, que se pode afirmar, sem margem de erro, que as civilizações antigas se basearam em seu perfil psicológico para dar vida à figura do satanás que chegou até nossos dias. Tanto que, associada essa visão religiosa à do psicanalista, a conclusão é de que esse demônio contra o qual as igrejas previnem seus devotos não passa da representação alegórica de um perfil absolutamente real que integra o nosso cotidiano, seja na dificuldade para o identificarmos ou para nos protegermos de sua maléfica influência.

Tomando por base a personificação bíblica do mal poder-se-ia facilmente estabelecer pontos comuns entre a figura mítica e o narcisista destes novos tempos, como estas: o diabo é tido como um “anjo caído”, um ser de origem divinal criado para materializar o pensamento de Deus ao decodificar o universo sutil para a concretude humana. Esse entendimento pede que se empreste à figura do mal uma forma humana como a nossa, mas conservando os encantos de um anjo e outros atributos que o identifiquem com seu criador. Tais atributos divinais estariam visíveis na aparência levada aos outros, como também uma incomparável habilidade para provocar a sensação de plenitude e atração a quantos dele se aproximem.

Uma mulher de olhos fechados segurando uma pequena cereja próxima à sua boca.
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Identificamos aqui o primeiro traço comum entre o mito e a realidade: o narcisista possui uma capacidade quase irresistível de sedução para fazer com que toda tentativa de resistência seja jogada por terra e encontre livre acesso para se instalar e dominar completamente suas vítimas. Esse traço comum é tão forte que só bem mais tarde, depois que já se libertaram dele, elas conseguem entender como ele conseguiu cegá-las de forma tão intensa para obter o resultado que buscava. Elas passarão o resto da vida se perguntando que tipo de poder seria aquele que as colocou num verdadeiro “transe hipnótico”, para se virem entregues à sua vontade sem meios de lhe interpor qualquer tipo de barreira.

Outro paralelo com a mitológica encarnação do mal é sua abordagem incrivelmente sedutora, em que cada gesto, olhar, tom de voz ou sorriso são cuidadosamente estudados para deixar a vítima sob absoluto encantamento durante todo o tempo em que permaneça em sua presença. E nesse quesito há que se reconhecer um poder praticamente infalível que não dá para contestar. Sua vítima viverá a experiência de uma serpente sob domínio da aura de seu encantador ou de uma rã diante do facho de luz que a deixa paralisada e totalmente à mercê do caçador. Após perceber a vítima presa à sua teia, essa ardilosa aranha vai se aproximando de forma imperceptível, até sentir “a mosca” sob total domínio e incapaz de qualquer reação.

E seguindo os mesmos moldes do “Senhor das Profundezas”, a soberba e a vaidade do narcisista não conhecem fronteiras, figurando entre as características das quais ele nunca abrirá mão. Por isso não aceita sair derrotado em qualquer de suas investidas e não desistirá antes de esgotar seu vasto repertório de artimanhas até atingir o último dos seus objetivos. E que não se duvide se o arsenal de redes lançadas sobre a vítima parecer inesgotável: “conformação” é uma palavra que não consta em seu dicionário no contato com uma vítima em potencial, e a única forma de interromper definitivamente a sequência de investidas será caindo fora de seu alcance e com todos os canais de contato trancados.

Tenha-se em mente, entretanto, que seu perfil não inclui a menor habilidade para lidar com frustrações. Desistir do que quer é visto por ele como sinônimo de derrota, daí porque ele descarta de cara essa possibilidade por se ver invencível. Consequentemente, a palavra “perder” também jamais vai figurar como verbete em seu dicionário. E não fica por aí: se a derrota lhe for imposta por algum fator que não consiga impedir, ele se mostrará obsessivo na ideia de reverter a situação por todos os meios possíveis e imagináveis, revisando todo o paiol de munição de modo a reforçar sua artilharia.

A estratégia será retomada, claro, pela sedução, que sabe ser seu ponto forte, quando despejará todo o seu charme sobre a vítima rebelde como quem atira açúcar à sua mosca mais desejada. Se esta, porém — acostumada a todo seu arsenal de ardis — se recusar a cair de novo na armadilha, verá despencar de supetão a máscara do Don Juan apaixonado, revelando por baixo a carranca assustadora de caninos prontos para abocanhar a carótida de sua presa.

A postura da gárgula ameaçadora que se lança sobre quem ousou desafiá-la para lhe dilacerar as carnes acontecerá no segundo imediato à rejeição por sua vítima, que fica atônita diante da transformação tão instantânea. E que ela não tenha dúvidas: esse tempo pode ser mais curto do que o necessário para Clark Kent tirar os óculos e se tornar o Super Homem ou que o lobisomem precisa para perder a forma humana e se ver convertido em fera.

Um homem trajando vestes que caracterizam uma representação popular de anjos: asas situadas nas costas e pele pálida.
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Ao vivenciar a transformação abrupta do anjo imaculado na do demônio em sua forma real, essa visão costuma provocar forte impacto em todos que a testemunham. Daí ser comum nos que a assistam desenvolver forte rejeição à ideia de revivê-la. Pessoas de relação menos íntima com o narcisista são as mais afetadas diante de uma de suas explosões de raiva, que parecem anular todo o universo à sua volta pois que ele não consegue enxergar ninguém além do objeto do seu ódio e a sua própria vontade de explodir como um vulcão que reprimiu sua natureza por mais tempo do que poderia fazê-lo.

Mas esse momento não gera problemas apenas para suas vítimas, pois que a liberação da sua fúria faz com que ele revele tudo o que procura ocultar o tempo inteiro, que é sua face mais demoníaca. E é talvez um dos pouquíssimos momentos que fogem totalmente ao planejado e ao cuidadoso tratamento que dão à sua imagem. Conter a explosão seria o mesmo que tentar impedir a erupção do vulcão tapando a boca da cratera e impedir que libere seu rio de lavas e lance suas chamas no espaço. Daí porque os momentos que se seguem são bastante impactantes tanto para a vítima como aos desavisados do entorno, já que o efeito se mostra infinitamente superior à causa.

Desmascarado por si mesmo diante de todos, o narcisista injeta ainda mais adrenalina no sangue por causa da própria exposição, do susto que vê estampado no rosto das testemunhas e do constrangimento levado a todo o ambiente, pois que o momento é de perda absoluta de contato com tudo à sua volta e consigo próprio. Só sabe que cada “erupção” torna bem mais difícil o resgate do domínio sobre os outros, por isso odeia quando ela ocorre, por se tratar de algo sobre o qual não consegue exercer qualquer tipo de controle e o deixa vulnerável, algo que entra em conflito com a postura autoritária e invasiva que mantém poder absoluto sobre tudo e sobre todos.

Duas ou três repetições de sua transmutação geralmente são suficientes para que todos à sua volta — incluindo as vítimas antes sob transe hipnótico — sejam despertadas para sua incrível capacidade de dissimulação, como se os chifres se lhe brotassem da testa “no piloto automático”, e a face angelical repentinamente lhe desnudasse a cara horrenda onde os olhos parecem ter força para transpassar o corpo da vítima. Não é difícil entender por que ele a vê como sua maior fragilidade, pois é a oportunidade que suas presas precisam para lhe escapar das garras e, se forem espertas, se colocarem bem longe de seu alcance.

Nem é preciso dizer que o narcisista odeia esse “gatilho” instalado em sua personalidade que transforma o anjo em demônio, pois têm consciência de entregar à vítima a prova mais incontestável da máscara angelical utilizada para esconder a face do diabo. Ele tem ciência de que a cada repetição do evento, a vítima se colocará mais distante dele pela tomada de consciência da sua real natureza, e é quando ele fará uso de outro estratagema tentando reverter o quadro e o risco da perda de controle que ele não admite em nenhuma hipótese: vai se mostrar arrependido e inconformado com o descontrole, que tentará dramatizar ao máximo, de modo a simular um sentimento que não conhece. Nesses momentos, lágrimas abundantes lhe rolarão pelas faces, pedirão perdão e tentarão convencer a vítima de que eles são as maiores vítimas, pois elas conseguirão provocar uma situação incomum, que libera “tudo o que eles não são”, quando na realidade é justamente o contrário: apenas arrebenta o elástico da máscara, mostrando a face verdadeira que se esconde por trás dela.

Com isso, poderemos perceber que, em se descrevendo a natureza psicopática do narcisista, não se achará meio mais eficiente e didático do que compará-lo ao diabo bíblico em todos os seus detalhes: o do assédio seguido de intensa sedução (quando exibe toda a formosura e a perfeição do ser divinal); o do farto arsenal de tentações de que faz uso após estudar sua vítima e descobrir qual exerce maior fascínio sobre ela, e finalmente a “possessão”, quando lhe adentra o corpo e o espírito e a faz perder contato consigo mesma, permanecendo sob controle absoluto de seu demônio particular.

Uma ilustração do diabo bíblico: chifres e um tridente na mão esquerda.
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Falta apenas acrescentar que, após se apossar da “alma” de sua vítima, as chances desta última de escapar à “possessão” se mostrarão inversamente proporcionais ao tempo de domínio, do qual será muito difícil sair sem intenso trabalho de “exorcismo” seguido de forte “autoblindagem” por todos os meios de que puder dispor. Isso porque, como já foi dito, seu algoz fará incontáveis investidas no melhor estilo do espírito obsessor, só desistindo após se dar conta da absoluta impossibilidade de conseguir acesso ao “espírito exorcizado”.

Como último alerta, resta a ciência pelas vítimas de que não existe qualquer possibilidade de seu demônio voltar a ser o anjo rodeado da glória e da beleza que lhe foram exibidas no começo. Elas precisarão entender que todos os seus esforços para tentarem enxergar a terrível experiência pela qual passaram como apenas uma “fase ruim” — como ele tentará fazê-las acreditar — não vai além de pura fantasia. Isso nunca vai acontecer, e o retorno à normalidade só terá lugar quando elas apagarem da memória, de uma vez por todas, a figura enganadora do “anjo” para aceitar a natureza do demônio como ele é, em toda a sua vasta variedade de disfarces.

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Uma forma eficiente de consegui-lo é entendendo que esse resquício de fascínio e atração pós-rompimento que elas continuam sentindo não se trata efetivamente de um sentimento verdadeiro, nem que tenha existido algum dia, mas puro apego ao sonho do “príncipe encantado” e ao mundo perfeito e imaginário que ele criou, exatamente como as tentações impostas ao Cristo no deserto, mas que em nenhum momento foram reais. O diabo bíblico se revela insuperável ao imprimir tais ilusões na mente humana, não é mesmo? Pois o narcisista faz exatamente o mesmo com seus sonhos e desejos, antes de transformá-los no maior pesadelo que terá oportunidade de vivenciar ao longo de toda sua existência.

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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