Comportamento Psicologia

A conturbada relação entre uma aranha e sua mosca: aprendendo a lidar com portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista – episódio XVI

Uma mulher se observando num espelho.
Ina ART / Shutterstock

O termo “psicopata”, como sinônimo de doença psíquica, foi usado por Freud em um artigo publicado postumamente, em 1942, sendo ainda hoje um dos menos definidos na psiquiatria. Portanto precisaremos ainda de muitos anos de pesquisa para obter um conhecimento mais aprofundado sobre o transtorno. Por essa razão persiste a dúvida sobre até onde vai o narcisismo – enquanto desvio de personalidade – e onde começa a psicopatia. Daí é comum que muitos autores, por causa de uma definição mais precisa, façam uso do termo “psicopata narcisista” para se referir ao portador de TPN.

Kurt Schneider descreveu personalidades psicopáticas como se tratando de formas agravadas de desvios comportamentais comuns à população em geral, mas diferentes no grau de comprometimento mental de seus portadores. Ao final de seus estudos havia definido pelo menos dez tipos de características psicopáticas em que várias delas podem também ser observadas no TPN, permitindo entender a dificuldade de separar os dois distúrbios.

Um homem encapuzado colocando uma máscara sobre o seu rosto.
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Evidentemente que qualquer pessoa pode apresentar algumas daquelas características sem que isso seja determinante para afirmar que se constitua numa personalidade anormal, ou faça dela um psicopata narcisista. A própria Associação Psiquiátrica Americana, por exemplo, não faz uso do termo “psicopata” em seu manual de diagnósticos, preferindo a expressão “transtorno da personalidade” para definir a presença de algumas delas ou dar nome ao conjunto completo de características percebidas em uma pessoa. E isso se aplica até mesmo aos casos em que são identificadas no paciente alterações clínicas decorrentes de lesões cerebrais constatáveis por exames médicos, como o raio X.

Contudo isso não significa descartar que se tratem de desvios de personalidade descritos nos anais da medicina ou que não tragam consequências graves tanto para o portador quanto para a sociedade apenas por causa da dificuldade de diagnóstico, da ausência tratamento ou da imputação dos danos levados às suas vítimas. Daí que a recomendação ainda é a de manter o distanciamento de pessoas acometidas por tais transtornos tão logo sejam identificados, notadamente as que tragam históricos nos quais inequivocamente se constatem quadros semelhantes, independentemente de sua origem, por constituírem um verdadeiro problema social que ainda não conta com nenhuma ação preventiva ou reparadora.

Se já é difícil confirmar uma psicopatia até em casos nos quais a tecnologia disponível revela a presença de anomalias cerebrais, torna-se quase impossível identificá-la nos primeiros anos da infância, por causa de fatores próprios dessa fase da vida, que ainda não cobra da criança as mesmas regras de convívio aplicáveis à idade adulta. Diferenciar, portanto, um distúrbio patológico do comportamento próprio e socialmente aceito nesse estágio normal de desenvolvimento acaba se tornando um desafio praticamente insuperável. Daí é importante entender por que os reais desvios de personalidade só se mostram mais claros a partir do início da idade adulta, quando a personalidade já está formada e, consequentemente, é mais difícil de ser corrigida.

Então podemos dizer que, de concreto, não há ainda na nossa ciência elementos que permitam a identificação de uma anomalia no desenvolvimento de pessoas muito jovens sem uma causa física que a denuncie — ou até a ocorrência de um fato que fuja completamente aos padrões. Soma-se a isso o agravante de que esses “padrões” têm grande amplitude, e a referência acaba restrita a situações extremas, que escapam completamente ao “comportamento mediano” ou típico de cada indivíduo. Significa dizer que, ainda que um jovem demonstre uma postura mais radical se comparada à de outros de mesma idade ou até da maioria, isso pode facilmente ser atribuído a diferenças de temperamento, não a uma anomalia.

A face de um homem encapuzado.
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Mesmo entre adultos, a percepção de um desvio de personalidade nem sempre é constatável, a menos que beire extremos pouco comuns à maioria das pessoas. Daí que, para se chegar a uma conclusão de psicopatia no que se refere a comportamentos, é mister que se observe um padrão mantido ao longo do tempo, diferentemente, por exemplo, de episódios depressivos ou surtos psicóticos, que costumam ter começo, meio e fim.

Nos quadros de TPN, objeto desta nossa série, um dos sintomas que mais o revelam é que seus portadores fazem alusão às suas desventuras e dificuldades sem jamais admitir que a origem dos conflitos está neles próprios, atribuindo-os às pessoas com quem se relacionam. Esse tipo de psicopata narcisista se destaca por não fugir de relacionamentos: pelo contrário, pois ele sente uma necessidade incontrolável de ter uma “plateia” para a qual se exibir, sem a qual suas “conquistas” se lhe apresentam desprovidas de sentido. E essa é a razão para se aproximar das pessoas de forma bastante envolvente e sedutora, já que vê em suas vítimas a solução para todos os seus problemas, até mesmo nas tarefas mais simples, que não seriam vistas como problemas por uma pessoa normal. Outro indicativo bastante típico desse perfil é que ele jamais se sentirá atendido em qualquer de suas “necessidades”, descobrindo sempre uma outra tão logo obtenha suprimento para a última.

Outra característica quase nunca ausente no TPN descrito é sua postura paranoide em relação à vítima da vez, quando revela uma desconfiança excessiva e forte sentimento de posse sobre ela e que pode, não raramente, envolver agressão. Durante o período de “posse”, a postura que mais se destaca é a do domínio absoluto sobre a “mosca” aprisionada em sua teia, comportamento levado à exaustão e de forma obsessiva, seguido por grande frustração quando as pessoas se recusam a abrir mão de si mesmas em benefício dele.

Pode-se ainda afirmar, sem muita margem de erro, não haver espaço para um diálogo racional com o psicopata narcisista, notadamente com vistas à compreensão de que ele é a origem dos problemas que coleciona, um após o outro. Sua reação será a de estar sendo confrontado, fazendo-o descambar para um looping interminável de conflitos nos quais precisa se sair vencedor a qualquer preço. Inútil, portanto, esperar que se conscientize de seu problema e ocorra algum tipo de mudança a partir da conversa. No trato com narcisistas muito jovens, a neutralização pela família pode ocorrer por causa de limites bem definidos e objetivos, mas com adultos não se descobriu ainda outra forma de neutralizar suas ações, a não ser pelo distanciamento físico irreversível.

Blocos de madeira que simbolizam pessoas. Dentre estes, um cuja cor da ilustração é vermelha. Uma mão o manuseia.
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Inexistindo medicação ou tratamento que consiga suprimir os efeitos de transtornos de personalidade, resta às vítimas esperar que a instabilidade de humor, estados de ansiedade e surtos sucessivos de insegurança sentidos pelo portador o direcionem para uma busca de solução, ainda que momentânea. Mas é necessário entender que isso dependerá apenas dele, já que se mostrará refratário a toda e qualquer tentativa advinda de iniciativa alheia. Casos de transtorno de personalidade podem ser mantidos sob relativo controle quando submetidos à psicoterapia, mas em geral seus efeitos são lentos e sem garantias de se chegar a um resultado. Basta dizer que até o momento não há comprovação de tratamento que tenha se mostrado eficaz para tais transtornos.

A estratégia mais comum do terapeuta, diante de alguém que aceitou a relação de causa e efeito entre seu comportamento e o sofrimento que impõe a si mesmo e a outras pessoas é o de sugerir a seu paciente trabalhar novas formas de atingir seus objetivos por si mesmo, antes de desejar que outros o façam em seu lugar. O processo, porém, é muito complexo, aproximando-se do critério aplicado a pessoas normais em estados de depressão profunda, tendência para o suicídio ou surtos psicóticos que causem riscos a elas próprias ou a outras pessoas.

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O importante é saber que tentativas de controle aplicadas a tais casos são tratadas até o momento como ações paliativas, não como solução, já que não há registros de melhora definitiva após o tratamento. Ter essa consciência assume papel de vital importância para vítimas de portadores do TPN, que precisam encarar o afastamento como única medida que lhes permita sair da relação sem maiores sequelas, em lugar de investir no relacionamento acreditando que sua dedicação terá poder para interromper os conflitos e produzir algum tipo de mudança duradoura ou até mesmo definitiva.

Acompanhe a série:

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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