Autoconhecimento

EPISÓDIO IV DA SÉRIE: A conturbada relação de uma aranha e sua mosca – Aprendendo a lidar com portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista

Pessoa branca abraçando espelho com mar ao fundo.
Cristina Conti / Shutterstock

Uma característica típica do narcisista manipulador é a de se mostrar incapaz de referir-se a uma outra pessoa sem tecer um comentário maldoso, mesmo que sutil. Ele não é alguém que simplesmente constata as coisas: ele as julga! E o que é pior: faz julgamentos quase sempre incompatíveis com a realidade do outro, quase sempre carregados de críticas pesadas e destrutivas, sem a menor contemplação ou preocupação com respeito à sua integridade moral, ou até usando de mentiras para reforçar a ideia que deseja passar aos outros. E o que não falta são exemplos de como ele usa a enorme habilidade que tem para justificar suas ações, jogando a culpa nos ombros de terceiros. Pode acontecer contra um parente próximo ao queixar-se de que “esperava horas” para ser atendido quando o procurava na empresa, enquanto interrompia até reuniões de diretoria para atendê-lo de imediato. Não faria exceção na conturbada relação com os filhos, enfurecendo-se se um deles não pudesse atendê-lo quando ligasse, por exemplo, por estar de saída. Atitudes do cotidiano tão comuns como essas, em que precise esperar para ser recebido ou não consiga falar no exato momento em que liga, já são suficientes para despertar a sua fúria.

E a reação não se limita a pessoas de sua intimidade. Com aquelas com as quais começou a se relacionar há pouco tempo, alguns absurdos também são cometidos, como ocupar rapidamente um espaço que ainda não lhe foi franqueado. Assim, pode fazer uso de pertences alheios como se fossem dele, gerando constrangimentos a quem se perceba invadido com suas atitudes. Nessas ocasiões não é incomum que se apresente em público com objetos pessoais do novo amigo ou da namorada – como um celular de última geração, ou dirigindo seus veículos – para “comprovar” um suposto grau de intimidade e a confiança que depositariam nele. E, quando se trata de pessoas muito conhecidas e prestigiadas, faz questão de usufruir privilégios e deferências especiais que o coloquem na frente das pessoas comuns, já que se vê como alguém com tal prerrogativa e não vai perder a chance de se destacar onde quer que se apresente. Se tiver seu próprio carro, logo tratará de conseguir um cartaz de “trânsito livre” para afixar no para-brisas – só permitido a autoridades especiais – para burlar as regras e ostentar sua posição de pessoa acima do bem mal e do mal, não submetida às mesmas leis aplicáveis a todos os demais mortais.

Ainda que todos esses exemplos pareçam coisas distintas, na realidade eles têm uma mesma raiz: a de alguém com profundo complexo de inferioridade e tal sentimento de fracasso que precisa provar a si mesmo – e a todos que o conheçam – que “está sempre por cima”. E, se há um erro que ele nunca irá perdoar é ter sua verdadeira condição exposta – intencionalmente ou não –, pois atingi-lo em sua vaidade vai despertar sua ira e fazê-lo virar todos os seus canhões para a pessoa que o fizer. E até naquelas relações que não interessa, no momento, interromper, questionamentos só farão com que se sinta desafiado e não descanse enquanto não provar a seu observador que este não tinha estatura para perceber como ele consegue ser um presente na vida de qualquer pessoa!

Como todo bom narcisista que precisa ser admirado por todos, ser visto como uma pessoa comum lhe pode ser insuportável, e ele irá fazer de tudo para provar que já nasceu superior, alguém especial ou muito acima do que “gente comum” consegue imaginar. Nunca, portanto, irá admitir ser tratado como igual, o que lhe chega como uma agressão ao seu status de pessoa da importância com que se vê. Sempre o verá como uma quebra do protocolo devido a uma autoridade, a exemplo de um soberano num almoço em que tem que ser a último a ocupar o lugar na mesa e o primeiro a se servir, e, quando interrompe a refeição, todos têm que fazer o mesmo. Daí porque o narcisista toma como ofensa qualquer “quebra de protocolo”, como a de não obter prioridade absoluta sobre os outros, numa espécie de reconhecimento de seu poder.

Mulher branca segurando espelho.
GingerKitten / Shutterstock

E diga-se de passagem: não há muito que fazer a respeito, a não ser desejar boa sorte aos que permaneçam ao seu alcance. Para aqueles que têm a alternativa de se afastar, é preciso admitir que nem sempre o conseguem, mesmo após tomar ciência do processo doentio em que se meteram. Até porque o narcisista só deixa em paz as pessoas que ele mesmo toma a decisão de descartar, a menos que elas se coloquem em local a que ele não tenha acesso. Além disso, há vítimas que se apegam à ideia de que conseguem transformar o sapo em príncipe tratando-o com beijos, o que é uma ilusão, pois ele só faz o que interessa a ele. Pode acontecer de algumas se virem despertadas por um texto como este para buscar uma saída; já outras se sentirão destruídas sem, contudo, reunirem confiança e coragem para tomarem a decisão. Quando isso acontece, pessoas próximas podem dar uma ajuda, mas sempre haverá o risco de acabar no papel do “bicho-papão” nesse drama da aranha e a mosca da vez, pois que esta fará de tudo para acreditar que o relacionamento tem solução. As pessoas mais chegadas – que acompanham os acontecimentos de forma mais isenta e menos emocional – estarão sempre buscando uma forma de vê-la feliz como merece, mas nunca se pode esquecer que é indispensável que a própria vítima o deseje.

Pelo lado do narcisista manipulador, uma postura clássica é a de pintar sua vítima como a pessoa mais sórdida que já conheceu, tão logo perceba o barco “fazendo água”. Nesse ponto do relacionamento, não poupará adjetivos dos mais chulos para referir-se a ela, na tentativa de transferir essa ideia a todos à sua volta para justificar o descarte iminente. Afirma fazer de tudo para que “as pessoas de que ele gosta” não caiam na armadilha que ele caiu e nunca confiem na “falsa bondade” da outra pessoa, pois que tudo não passa de falsidade e se trata de alguém horrível, pronto para fazer o mesmo com todos.

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Dispensável dizer que, em paralelo, não perderá nenhuma chance de fazer seu próprio marketing, tentando mostrar o quanto sua generosidade pode se colocar “acima das maldades alheias”, já aproveitando a oportunidade para seduzir sua próxima vítima. Ele usará o episódio para se colocar à disposição dos que o ouvem para fazer “qualquer coisa de que precisem”, de modo a não terem que recorrer àquela pessoa horrível e, igualmente, “quebrarem a cara” como aconteceu com ele.

É preciso muito tato e cuidado diante de momentos como esses, quando o melhor a fazer é “prestar solidariedade” sem demonstrar muita importância ao que é dito, para não reforçar o papel de vítima do manipulador ou abrir a guarda de que ele precisa para se instalar, exibindo sua enorme disposição para ajudar a todos, mesmo sujeito a tanta “iniquidade” por parte das pessoas que busca ajudar. A postura a ser buscada deve ser tão neutra quanto possível, ou questionar a suposta postura do outro sem bater de frente com o acusador. Adotar uma posição de neutralidade sempre se mostrará como forma de proteção em frases como: “Fico surpreso com esse comportamento de fulano. Comigo, ele sempre foi muito correto e nunca me deu motivo algum para desconfiar de que seria capaz de algo desse tipo!”. Pronto! Isso desarma o manipulador ao mesmo tempo em que lhe passa o recado de que aquilo é um problema deles, e que você não está disposto a se meter, nem está ali para julgar quem quer que seja.

Enfim, é bom que se entenda que o manipulador só se oferece para ajudar alguém quando precisa. E, quando faz isso, não espera por nenhum convite: ele o fará espontânea e “desinteressadamente”. Pelo menos, é o que ele vai esperar que todos acreditem, daí porque angaria a fama de muito solícito e possuidor de “um enorme coração”. Ele estará sempre por perto quando “alguém precisar dele” ou tentando adivinhar problemas alheios que possa resolver, numa permanente postura de disponibilidade e generosidade extremas! Quanta nobreza nessa atitude, não? Aliás, mostra-se especialista em colocar-se à disposição e reforçar essa postura do “ombro amigo” todo o tempo, e antecipar a oferta de ajuda como a mais generosa das criaturas.

Homem branco com peça de xadrez no lugar da cabeça.
Gutzemberg / Shutterstock

À vítima, só restarão duas chances de evitar uma vida de conflitos: ou dá um jeito de se manter permanentemente útil para sua aranha até o fim da vida – o que é quase impossível, porque não dependerá dela –, ou então se reforça emocionalmente para encarar a ruptura de uma forma que não se desestruture no momento em que acontecer, pois que esse momento será tão inevitável quanto dois e dois são quatro! Outra coisa é não criar expectativas de que, no seu caso, isso não se aplica, superestimando a própria capacidade de lidar com a situação e minimizando a do manipulador de seguir com seus planos de dominação. Basta lembrar que, se ele ainda se mantém por perto, é porque ainda segue acreditando nas vantagens que pode extrair de sua “mosca”.

Um outro erro de avaliação é quando a vítima se fixa na crença de que o narcisista se aproxima somente das pessoas de posses, visando o poder e prestígio que elas lhe podem proporcionar e na boa vida que poderiam dar a ele. Mas pode ser que simplesmente tenha visto na vítima a chance de resolver problemas que ele enfrentava no momento, como gerenciar dificuldades que não estava disposto a enfrentar, ou não se sentia capaz de fazê-lo por si mesmo. Em resumo, ele poderia estar precisando simplesmente de uma “governanta da casa”, mas somente para os problemas, pois que as soluções cabem unicamente a ele. Tendo, porém, como pagar a alguém para a missão sem arcar com o ônus que sua “mosca” lhe traz com a convivência, que não se alimentem dúvidas de que ele o fará. Então não se iluda com a expectativa de oferecer seu melhor e receber o mesmo de volta, porque, no perfil de tais pessoas, essa possibilidade simplesmente não existe.

Acompanhe a série:

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Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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