Convivendo Psicologia

EPISÓDIO III DA SÉRIE: A conturbada relação de uma aranha e sua mosca – Aprendendo a lidar com portadores do Transtorno de Personalidade Narcisista

Uma mulher capturando uma foto em frente a um espelho.
Nicoleta Ionescu / Shutterstock

Na fase do domínio – representada pelo convívio diário ou frequente –, e sendo muito mais difícil sustentar as falácias que contava sobre si na fase anterior, o narcisista ainda continuará por um bom tempo tentando manter as mentiras de antes, numa tentativa ingênua de enganar quem agora se mostra próximo demais para separar, sem grandes dificuldades, ficção de realidade. Talvez seja esse o ponto mais obscuro e doentio de sua personalidade, pois que insiste em continuar se colocando como senhor absoluto de seu castelo de areia, como se pudesse impedir que se desfaça no primeiro sopro, visto que agora todos à volta já conseguem vê-lo como realmente é. O lado mais patético é vê-lo apegado com unhas e dentes a uma imagem transformada em pó, como que numa tentativa de impedir que sua vítima atual recupere a visão da saída ao desabar do castelo e a volta à realidade que, paulatina e inevitavelmente, começará a ser desvendada.

O que mais surpreende nos incontáveis atritos que, a partir daí, começarão a acontecer é que, passada a hora do enfrentamento em que tudo parecia estar caminhando para uma tragédia, o momento seguinte vem cheio de demonstrações de “apaziguamento”, em que o manipulador declara mostrar-se surpreendido com a própria agressividade, conseguindo até convencer as testemunhas de que teria chegado a tal desvario porque foi “provocado” até o limite de seu autocontrole, e declarando-se profundamente chocado com sua própria incapacidade para evitá-lo. E quem o ouve é capaz de jurar que é sincero e se mostra arrependido o bastante para nunca mais se permitir atingir de novo aquele ponto, coisa que, uma semana depois, já pode estar completamente esquecida em novo e tormentoso conflito de grandes proporções.

Dessa forma, o que fica mais evidente é que o convívio da “aranha” com a “mosca” – agora presa em sua teia – se revela como uma gangorra repleta de altos e baixos, de brigas e reconciliações, de afastamentos e retornos intermináveis, em que ora se odeiam, e ora parecem ter nascido um para o outro, mas sempre por curtos espaços de tempo. Isso porque a “aranha” jamais estará satisfeita com o que já conseguiu: sua vida é um permanente desafio para provar a si mesma que continua em pleno uso de suas habilidades de sedução para conseguir tudo que quer. Então, se a “mosca” se rendeu ao manipulador acreditando que conseguirá modificá-lo com o tempo, pode esquecer. Sua mudança é tão improvável quanto esperar que anjos baixem diante de seus olhos para levá-los a um passeio pelo Olimpo.

Um homem com um semblante maldoso sorrindo.
Andrew Poplavsky / Canva

Todo esforço do manipulador no exercício da dominação é o de sentir-se um permanente “Don Juan”, partindo sempre para buscar mais vítimas quando percebe ter a anterior já bem aprisionada em sua teia. Ele nunca se contentará apenas com o que esta lhe pode oferecer, indo sempre em busca de mais. Daí que esperar fidelidade dele em algum momento se mostra como uma daquelas coisas não apenas impossíveis, mas literalmente fantasiosas. Ele estará sempre envolvido em muitas aventuras de sedução independentemente do êxito obtido na atual, que, pela sua ótica, não vai além de uma entre tantas outras possibilidades. Mostra-se, assim, incansável na busca por satisfação e em provar a si mesmo que seu poder é inesgotável, daí porque vai seguir essa trajetória até o último dia de sua vida, malgrado as apostas dos mais próximos de que “ele vem mudando” e um dia pode encontrar-se com o melhor de si mesmo.

Pois que não se iludam: não há amor ou dedicação que possa mudar essa realidade, e todos os esforços de tentá-lo serão em vão, já que acabarão sendo vistos pelo manipulador como “tentativa de controle” e cerceamento de sua liberdade. E, sempre que se sentir dessa forma, é certo que partirá para a fase de descarte temporário ou definitivo, dependendo da capacidade de sua “fonte de vantagens” para continuar lhe oferecendo o que deseja ou, mais especificamente, de sua percepção sobre o que ainda pode extrair de seu “cofre particular”, seja em algum serviço que ela realize e que dificultaria sua vida de ver-se privada disso, seja porque a mosca é que lhe garante a sobrevivência, e não ele a dela. Se ele concluir, porém, que o “capital aplicado” já se mostra esgotado, que não se alimente qualquer dúvida: ele dará um jeito para que o “descarte” aconteça o quanto antes, não importa o quanto o outro lado tenha apostado na relação ou lhe tenha entregue tudo que esteve ao seu alcance.

Em algumas situações em que a dependência da outra parte se mostra permanente, apresentando-se interessante então para ser mantida como “reserva de emergência”, ele pode “permitir” a proximidade a uma certa distância para lançar mão dela sempre que precisar – e APENAS quando precisar –, pois não terá qualquer contemplação em relação ao sacrifício de vida dessa sua vítima, já que o único tipo de amor que conhece é aquele que sente por si mesmo. E a forma como deixa isso claro pode atingir requintes de crueldade, quando é capaz de humilhar, ridicularizar e maltratar sua vítima sem qualquer traço de remorso. Pode fazer isso em público até, referindo-se à pessoa como “carrapato”, “chata”, “burra”, “ridícula” ou “bicho de pé”, sem buscar disfarces para seu incômodo, nem dar a mínima para o sofrimento de quem se vê do outro lado, usado apenas como um objeto qualquer que é buscado e descartado sempre que lhe for interessante.

Uma mão manipulando cordas de um boneco de fantoche.
SvetaZi de Getty Images / Canva

E que fique bem claro: a continuidade da relação nunca dependerá do que a outra parte faça – e por melhor que o faça –, mas apenas de que ele ainda veja algum tipo de benefício em mantê-la, desde que continue dando as cartas e ditando as regras a que apenas a outra parte fica sujeita, não se aplicando nunca a ele próprio. E, para ter garantias de que tudo continuará do “seu jeito”, fica cada vez mais evidente o isolamento em que sua vítima vai mergulhando dia após dia. Em pouco tempo, caso não estabeleça forte resistência ou crie mecanismos para “driblar” o controle, acabará separada de sua família, de seus antigos amigos, cerceada nos seus momentos livres para novos contatos, ou até impedida de manter sua página ativa nas redes sociais, para que não sofra influências que ele sempre verá como ameaça ou oportunidades para “detoná-lo”.

Mas esse isolamento não fica restrito apenas à pessoa da “mosca”. A própria “aranha”, quando nos bastidores, entre os que compartilham de sua intimidade, é um verdadeiro poço de amargura e queixas contra todos que – por conhecerem como ela pensa e do que é capaz – evitam ao máximo um contato mais próximo. Para os poucos que estão à sua volta, mostra-se um eterno injustiçado e alvo de toda sorte de “complôs” e conspirações por parte dos que o odeiam. Suas amizades são incrivelmente efêmeras, durando apenas o tempo em que consegue iludi-las com suas falácias, sua inesgotável capacidade de criar castelos de vento, e até que suas vítimas comecem a perceber sua rede de mentiras e propor-se a explorá-las a partir dos seus pontos obscuros e contraditórios, para desmontá-las uma a uma. Assim, sua vida é uma sucessiva coleção de conquistas, entre empregos, amigos e relações afetivas que atingem rapidamente seu ápice para desabar em seguida, ou seja, demonstra uma incrível capacidade para conquistar tudo que quer, mas uma absoluta e inquestionável incompetência para mantê-los por mais do que um curto período de tempo.

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Por conta disso, quando se sente ameaçado entre suas conquistas, ele redobra os cuidados para manter longe todas as pessoas que possam colaborar com a desconstrução de seus “iglus”, que começam a ficar demasiado expostos ao sol, fazendo de tudo para evitar que seus pretensos “inimigos” se encontrem, ou que mantenham contato com suas vítimas longe de sua vista. Nesses períodos mergulha numa paranoia insuportável para os que se veem submetidos a ela, sendo capaz de ficar ouvindo conversas atrás das portas, chegar sorrateiramente e sem aviso para surpreender supostas tramas contra ele, ou até seguir suas “moscas” para se certificar que não o enganam. A postura é de posse e controle quase absolutos e aos quais procura dar forma de “ciúme” ou cuidado, mas que não vai além de disfarce para o verdadeiro objetivo, que é a manutenção do domínio sobre tudo e todos que ele considera como de sua propriedade única e exclusiva.

Acompanhe a série:

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Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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